
ŨN SI AG TŨ PẼ KI VẼNH KAJRÃNRÃN FÃ. Esse é o título, em kaingang, da primeira tese de doutorado defendida por um aluno indígena na história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O autor do estudo, Bruno Ferreira, de 53 anos, defendeu a tese na última sexta-feira (4), na Faculdade de Educação, cujo título traduzido significa “O papel da escola nas comunidades kaingang”.
Atualmente morando em Iraí (RS), na região norte do Estado, Ferreira foi criado na Terra Indígena de Guarita. Na tese de doutorado, ele narra sua trajetória de vida desde suas origens na terra indígena, sua infância e adolescência, e as “maldades” e castigos impostos pela escola por ser kaingang e, na época, não falar português.
Eram os anos de 1970 e a escola municipal ficava dentro da terra indígena em que ele nasceu, atendendo também alunos não indígenas, filhos de colonos arrendatários que viviam dentro da Guarita. A partir da 5º série, Ferreira estudou em escolas em Tenente Portela e, aos 27 anos, entrou no curso de história na Unijuí.
Conhecimento em prol dos seus
Ao contrário do que normalmente ocorre com o estudante branco, em que a busca pelo ensino superior está relacionada à um projeto individual de carreira, emprego e renda, os objetivos de Bruno Ferreira em sua trajetória acadêmica sempre foram outros. Para ele, cada passo dado, desde a graduação até agora no doutorado, sempre esteve relacionado à obtenção de conhecimento em prol do desenvolvimento do seu povo.
Leia também: Grife indígena estreia na passarela do Brasil Eco Fashion Week
“Vou para a universidade em busca de formação para um bem coletivo”, explica, contrapondo aos anseios individuais que normalmente prevalecem na motivação dos estudantes brancos. “Em nenhum momento minha ida à universidade está condicionada somente a mim, enquanto indivíduo, o Bruno, ela é para o desenvolvimento do povo kaingang, em primeiro lugar, e dos povos indígenas. É a coletividade do meu povo que necessita de mim para fortalecer a nossa identidade, negada há 500 anos.”
Ocupação de territórios
O primeiro doutor indígena da UFRGS defende que seu povo precisa acessar o espaço de conhecimento do ensino superior, ambientes tradicionalmente ocupados pela elite branca brasileira, moldado a partir de uma vertente europeia, eurocêntrica, onde novos conhecimentos encontram resistências para serem aceitos.
Nas últimas décadas, os povos indígenas vêm tendo seus direitos reconhecidos, como no caso do direito à língua e ao processo próprio de aprendizagem, o direito de manter valores e cultura própria, garantidos pela Constituição de 1988 e impulsionado pela Lei de Cotas, em 2012. “Até então, a universidade e a escola sempre negaram esses conhecimentos”, afirma Ferreira.
Além disso, o pesquisador kaingang diz que, na pós-graduação, há também a ideia de compartilhar os conhecimentos indígenas oriundos da ancestralidade dos povos, saberes que precisam ser reconhecidos na universidade para, de algum forma, promover a interculturalidade no ambiente acadêmico. “Ao trazer nosso conhecimento, práticas e visão de mundo à universidade, vamos fortalecer a identidade dos povos indígenas e apresentar conhecimentos que também podem servir à sociedade, um outro mundo que a sociedade não indígena não conhece”, explica.
Entre alguns aspectos desse outro mundo, ele destaca a relação do indígena com a natureza, e pondera ser um equívoco o conceito de que os povos indígenas a “preservam”: “Eles são a natureza, eles vivem ela, tem uma relação íntima com a natureza”.
Recepção da academia
Com a experiência de quem percorreu um longo caminho até ser o primeiro indígena a concluir doutorado na UFRGS, Bruno Ferreira conta que o primeiro olhar recebido pelos indígenas na universidade é de negação. E isso que ele entrou na graduação numa época em que não havia o sistema de cotas, seguindo o rito comum da seleção, assim como na pós-graduação.
“A gente é aquela coisa negativa dentro da sala de aula, a gente é vítima de um sistema que criminaliza. Cansei de ouvir na sala de aula da faculdade: ‘Aqui não é lugar de índio’, ‘Tá ocupando o nosso lugar’”, recorda. O efeito, todavia, é contrário. O pesquisador afirma que a discriminação acaba por fortalecer os indígenas. Ferreira tem consciência de que a universidade não mudará sua estrutura, alicerçada sobre bases antigas, porém diz ser possível mudar o pensamento de alguns professores.
O primeiro doutor indígena da UFRGS pondera que a participação de seu povo na universidade também serve ao propósito de se apresentar à sociedade não indígena, e ainda colocar a serviço dessa sociedade os seus saberes. “Temos muito conhecimento que precisa ser compartilhado. Além de fortalecer nossa identidade, é também dizer que nosso conhecimento pode ser útil à humanidade.”
‘Percursor’ indígena
Maria Aparecida Bergamaschi, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRGS, é a orientadora de Bruno Ferreira. Ela elogia muito a atuação dele dentro da universidade, uma liderança nacional e um dos primeiros indígenas a entrar na universidade para cursar graduação nos anos de 1990. “O Bruno é um percursor, tem muito compromisso social e traz isso pra dentro da universidade. É muito importante a presença dele na Faculdade de Educação.”
Maria Aparecida atua há 20 anos com a temática indígena, fato que a faz brincar ser “suspeita” para falar do aprendizado que estudantes indígenas proporcionam à universidade e aos docentes. Ela enfatiza que os professores e colegas que entram em contato com alunos e a cultura indígena têm demonstrado cada vez mais interesse.
“A gente precisa buscar conhecimento, perceber que há outra língua, cultura e outra metodologia. Eles trazem muito firme esse conhecimento do seu povo. Todos que fizeram mestrado e fazem doutorado pesquisam temas importantes para a comunidade. Ter um título de mestre e de doutor da UFRGS também dá possibilidade de bancar a discussão com os gestores públicos”, afirma.
Com informações do Portal Sul 21