
A Associação dos Servidores Públicos da Agência Nacional do Cinema (Aspac/Ancine) divulgou carta aberta em que demonstra preocupação com o futuro da agência e do cinema no país. Relatório produzido por grupo de trabalho nomeado pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido) – e que deixou de fora a própria Ancine – propõe a fusão da instituição com a Agência Nacional de Telecomunicação (Anatel) e o fim das cotas para o audiovisual brasileiro nas TVs pagas.
Mas esta é apenas uma entre diversas propostas do Relatório que apontam para um desmonte das políticas audiovisuais nacionais e uma crescente desregulamentação do setor. O que vem sendo colocado em prática em diversos setores por Bolsonaro desde o início de seu mandato.
O documento está em consulta pública e foi produzido pelo GT, que é formado por integrantes dos ministérios da Economia e das Comunicações e, também, da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Apesar de diretamente envolvida na questão, a Ancine foi deixada de lado.
Regulação na mira
O Grupo de Trabalho sobre Serviços de Acesso Condicionado (GT-SeAC1) foi instituído pela Portaria 1.277/2020. A finalidade seria de elaborar propostas para atualização do marco jurídico referente aos Serviços de Acesso Condicionado. Ou seja, uma revisão da Lei 12.485/2011, que regulou o mercado de TV por assinatura e, dentre outras coisas, criou cotas de conteúdo nacional.
O próprio Ministério das Comunicações já deixou claro que mudanças nessa lei são prioritárias para o governo de Jair Bolsonaro – depois do leilão do 5G, também cercado de polêmicas.
“Temos vários grupos de trabalho. Um deles é o que está fazendo a revisão do SeAC. Várias empresas que estão observando o mercado do SeAC brasileiro esperam uma sinalização para investirem no país”, disse o ministro das Comunicações Fabio Faria, em maio, no evento “Diálogos Conexis Brasil”, promovido pela Conexis Brasil Digital, entidade que reúne as principais operadoras de telecomunicações do Brasil.
Disse ainda que fez reuniões com diversas destas empresas interessadas em investir no setor audiovisual brasileiro. Porém, não citou quais empresas são essas.
Desmonte da economia criativa
A Aspac lembra, no entanto, que a lei em processo de revisão teve um efeito muito mais amplo do que a regulação ou estímulo.
“Ela efetivamente criou todo um novo mercado de TV paga no Brasil para os produtores independentes”, afirmam os servidores na carta aberta.
Afirmam ainda que o audiovisual se tornou o setor mais estruturado da economia criativa.
“Segundo diversos estudos, adquiriu porte comparável às indústrias farmacêuticas e têxtil no país: corresponde a 1,67% do PIB brasileiro, adiciona mais de 20 bilhões de reais por ano à economia nacional e gera mais de 300 mil empregos diretos e indiretos”, pontuam.
Outro problema é que muito do que está no foco do grupo de trabalho é competência da Ancine, que sequer pôde participar das discussões sobre o seu próprio futuro e, também, das políticas públicas para o setor.
“Esta incoerência fez com que, ainda em novembro de 2020, parlamentares da Câmara Federal protocolassem um Requerimento de Informação questionando o Ministro das Comunicações acerca da não inclusão da Ancine e da Secretaria de Cultura no GT, e se o GT pretendia debater a fusão entre Ancine e Anatel. A resposta do Ministério das Comunicações foi que ‘o Grupo de Trabalho não discutirá a fusão da Anatel e Ancine’, mas “’seria possível abordar o tema de maneira preliminar’”.
Porém, ao contrário do que informado pela pasta, no último dia 11, foi publicada a Minuta de Relatório para Discussão com a Sociedade, colocada em consulta pública com prazo até 24 de agosto e depois prorrogado até 12 de setembro.
É justamente esse relatório que deve embasar as propostas do governo para o setor. E, ao contrário do que havia respondido oficialmente aos parlamentares, o relatório propõe a fusão parcial entre Ancine e Anatel.
Com isso, a Ancine seria esvaziada tanto em suas atribuições como em seu quadro de servidores.
“Restando uma Ancine esvaziada e precarizada, com pouco poder para efetivar as políticas públicas audiovisuais”
Servidores da Ancine
O que está em jogo
A começar pela questão das cotas e produção independente, o documento afirma que foi feita análise técnica em que “há percepção em certos segmentos do setor de que as plataformas de serviços OTT oferecem grande quantidade de conteúdo nacional, acima do mínimo exigido pelas cotar, o que reduziria as justificativas para a manutenção das coas no formato atual”.
Por fim, conclue que “com o fim esperado para a política (estimado em setembro de 2023), entende-se que o instrumento de cotas de programação cumpriu sua função e não é mais necessário”.
O que é realmente preocupante para o setor, conforme afirmam os servidores.
“Ora, “há a percepção” em que segmentos do setor exatamente? “Percepção” baseada em quais dados, quais análises, quais estudos, quais fontes, qual bibliografia? Foi realizada a Análise de Impacto Regulatório, que é uma exigência da Lei 13.848? Assim, com base numa simples “percepção” abstrata, sem nenhuma análise técnica de impacto, é sugerido enterrar uma política pública que foi em grande parte responsável pelo crescimento do setor audiovisual brasileiro na última década, por sua crescente participação na economia e na geração de empregos no país. Simplificações grosseiras como essa, sem fundamentação técnica, se repetem por todo o documento”
Servidores da Ancine
Cadê a Ancine?
A entidade que representa os servidores da Ancine cobra também uma posição da própria agência. Isso porque, de acordo com a Aspac, integrantes da agência participaram do GT. O que seria comprovado com vídeo da reunião inaugural, “em que um diretor da agência defende contraditoriamente que, pelo êxito da política de cotas, ela não seria mais necessária”.
A apresentação do relatório elaborado pelo GT também faz menção à agência com um “agradecimento especial à colaboração da Ancine”.
“O que é de se estranhar, já que o papel institucional da agência deveria ser o de defender suas competências legais e suas respectivas políticas públicas. Assim, seria interessante ainda que a Ancine divulgasse as análises técnicas e/ou jurídicas que embasaram sua colaboração ao GT”, cobram os servidores por meio da Aspac.
Diante do quadro, os servidores convidam a população em geral a se manifestar na consulta pública em defesa do audiovisual nacional.
“Degolar” a Ancine
Jair Bolsonaro se mostra insatisfeito com a Ancine desde o começo de seu governo. Em agosto de 2019, ele ameaçou a transferência do órgão para Brasília, como parte de um plano para a Ancine “deixar de ser uma agência e passar a ser uma secretaria subordinada a nós”.
O objetivo, segundo o mandatário, era sujeitar a aprovação de projetos a seus “filtros” pessoais. “Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos ou extinguiremos. Não pode é dinheiro público ficar usado para filme pornográfico”, afirmou.
Um mês depois desta declaração, Bolsonaro foi mais longe e ameaçou “degolar” os integrantes da Ancine: “Se a Ancine não tivesse, na sua cabeça toda, mandato, já tinha degolado todo mundo”. A ameaça foi completada por um gesto com as mãos sob o pescoço que representa o assassinato por meio de degola.
Economia Criativa e a Autorreforma
Em sua Autorreforma, o PSB tem a economia criativa como um dos pilares do projeto nacional de desenvolvimento para o país.
Os socialistas entendem que a nova economia baseia-se na abundância infinita do talento, da criatividade, da tecnologia e da cultura. O que fez com que o valor das mercadorias passasse a ser determinado não apenas pelo capital fixo (máquinas, prédios, equipamentos, móveis, etc.) e pela quantidade de matéria-prima utilizada, mas sim pelo design, pelos softwares e investimentos em brand (marketing, publicidade).
“Um Plano Estratégico de Economia Criativa, no âmbito de um Projeto Nacional de Desenvolvimento, pressupõe o desenvolvimento do design nacional, baseado na identidade brasileira, como elemento fundamental, inclusive para a modernização das indústrias tradicionais, pois é um imperativo cultural e tecnológico. O design não é só de arquitetura, de produtos de consumo nas áreas do audiovisual, moda e editorial. É também o design de processos, e até de plantas técnicas para serviços, como os hospitais, por exemplo”
Autorreforma
Com informações do TeleTime