
Levantamento inédito mostra que racismo religioso já atingiu 78,4% de pais e mães de santo brasileiros de religiões de matriz africana no Brasil. Pesquisa coordenado pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) e pela entidade Ilê Omolu Oxum aponta ainda que 91,7% ouviram algum tipo de preconceito por conta da religião escolhida.
Foram entrevistados 255 líderes de terreiros no Brasil, em diversas regiões. Quando o assunto é sobre denúncia, 68,63% informaram que não conhecem delegacias locais preparadas para receber esse tipo de discriminação, assim como 45,5% disseram não perceber acolhimento por meio do Disque-Denúncia.
Mais da metade dos casos (57%) acontece em situações do cotidiano, longe das lideranças e das autoridades.
O levantamento também revela que 31% dos terreiros não se comunicam com o público por meio da internet, ainda que uma boa parte, 61%, esteja regularizado.
O preconceito contra as religiões majoritariamente praticadas pelas pessoas escravizadas séculos atrás continua a existir. Porém, hoje em dia, observamos que, independentemente de qual seja a crença de grupos afrodescendentes, seja ela cristã ou não, a intolerância existe — e isso tem muito mais a ver com racismo do que puramente com preconceito religioso.
“São todas as nossas dores aqui listadas. São órgãos que nos maltratam, que nos massacram. Estou aqui para falar enquanto povo preto, que sustenta esse país que não nos respeita, que tira nosso direito à vida. Porque nossas águas, nossas matas, nossa terra, nos dão a vida. Se tiram isso, nos matam! Nos fazem morrer de banzo, nos fazem doentes, nos fazem sangrar todos os dias!”. A fala de Mãe Donana, liderança comunitária e espiritual do Quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas, expressou uma dimensão mais profunda do sofrimento contido em centenas de depoimentos de pessoas que fazem parte das religiões de matriz africana.
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O terreiro do babalorixá pai Samuel, por exemplo, foi incendiado no dia 7 de junho, na cidade de São Luís, Maranhão, no bairro do Cajueiro. O espaço existe desde 2006 e concentra o terreiro e a casa do babalorixá, Ilê próximo ao Morro do Egito, onde foi construído o primeiro terreiro da cidade de São Luís. Na segunda-feira (6), pai Samuel fazia um trabalho espiritual quando arremessaram uma pedra na casa. Na terça-feira (7) pela manhã, enquanto precisou sair para comprar itens religiosos, recebeu uma ligação com o alerta sobre o incêndio.
“Eu não posso sair de casa. Eu tenho até trauma. Quando eu vejo o meu celular tocar e a minha vizinha ligar, eu fico sentado no chão para não cair”. Pai Samuel tem se utilizado da fé para enfrentar o atual momento. “Eu perdi tudo, não tenho mais nada. Só sobrou a minha vida, a vontade de viver e a força que eu tenho em pai Xangô”, conta.
Pai Jonatan de Xangô, coordenador do Centro Nacional de Africanidades e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab) do Maranhão, prestou apoio a Samuel e lamentou o ocorrido. “É uma lástima o que aconteceu. Quem conhece pai Samuel sabe da sua luta e garra, e hoje vê o seu Ilê virar cinzas”. Em vídeo gravado, uma das pessoas lamenta o ocorrido e diz que “não vai dar em nada. A justiça para o candomblecista é zero”.
Os religiosos tentaram registrar boletim de ocorrência no dia 8 de junho, mas foram informados pelo delegado de que “não era com eles”. Eles tentaram se dirigir à delegacia especializada em atender vítimas de ataques de racismo, mas o delegado não estava no local. O BO só foi realizado no dia 9 de junho, quinta-feira, na Delegacia de Combate aos Crimes Raciais.
“Sempre acontecem coisas e nunca temos uma resposta. Esperamos que a perícia e a polícia civil identifiquem o que realmente aconteceu”, conta Pai Jonatan, quem acompanhou o Babalorixá Samuel na delegacia.
Essa é a terceira vez que o terreiro é atacado. Na primeira vez, colocaram fogo em um matagal próximo à casa, e as labaredas quase chegaram ao imóvel. No segundo caso, chegaram a incendiar a casa, que ficou parcialmente danificada. As características semelhantes dos outros ataques levam os religiosos a acreditar que a ação do dia 7 de junho foi criminosa. Apesar disso, dizem não ter nenhum suspeito.
Racismo é arma letal no Brasil
O negacionismo em relação ao racismo também nos faz fechar os olhos para outra realidade: o extermínio de jovens negros periféricos. De acordo com o Atlas da Violência 2020, a taxa de homicídios de negros cresceu 11,5% entre 2008 e 2018, e a de não negros caiu 12%. No total, 75,5% dos brasileiros assassinados na década são negros, com concentração nas regiões Norte e Nordeste. A violência policial é um dos principais motivos.
O levantamento mostra ainda que as mulheres negras foram mais vitimadas do que as mulheres brancas, correspondendo a 68% das assassinadas no mesmo período. Três em cada cinco vítimas são negras. Ao todo, são 4,8 assassinatos de todos os tipos a cada 100 mil mulheres brasileiras – as negras são três em cada quatro vítimas. São alvos de racismo (e todas as nuances e consequências disso) e do machismo, potencializando seu risco de vida de maneira absurda.
Outro ponto que merece destaque: em plena pandemia do novo coronavírus, negros e negras estão entre os que mais morrem pela doença. o racismo institucional aparecem na desigualdade de acesso e tratamento das raças ao Sistema Único de Saúde, o SUS, por exemplo.
A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra mostra que 11,9% dos pacientes negros já se sentiram discriminados em relação ao atendimento médico. A população negra também foi proporcionalmente a mais afetada pela covid-19. Uma pesquisa realizada na PUC-Rio mostrou que a as chances de um paciente preto ou pardo analfabeto morrer de covid-19 são 3,8 vezes maiores que as de um paciente branco com ensino superior.
Na Bahia, por exemplo, o boletim da Secretaria de Saúde aponta que pretos e pardos constituem cerca de 70% dos óbitos, demonstrando a situação da mais absoluta vulnerabilidade à qual essa parcela da população baiana está submetida.
De modo geral, a pandemia escancarou ainda mais as diferenças sociais baseadas na cor da pele. Os negros foram os mais atingidos pelo desemprego e vão demorar muito mais para se recolorarem no mercado de trabalho, o que certamente intensificará a desigualdade de renda entre brancos e negros que sempre foi característica marcante da nossa sociedade com heranças escravistas.
Em seu artigo no jornal Nexo, a vereadora baiana Ireuda Silva (PRB-BA) destacou que fomentar políticas públicas em combate à discriminação racial nunca foram tão importantes.
“Em Salvador, cidade mais negra fora da África, aprovamos na Câmara de Vereadores o Estatuto Municipal da Igualdade Racial, que sem dúvida foi um avanço e uma grande vitória no que diz respeito às políticas de reparação na capital baiana. Aqui, a desigualdade tem cor, e resolver a questão racial é um passo fundamental para o fortalecimento da democracia. É necessário combater toda e qualquer forma de discriminação, mesmo quando não nos atinge diretamente. É dever de todos.”
Com informações do Correio Braziliense, Jornal Nexo, Alma Preta Jornalismo e The Intercept