
Um dia depois que um extremista racista abriu fogo em dois bares na Alemanha, tendo como alvo pessoas que ele considerava “estrangeiras”, Awet Tesfaiesus ficou chocada com a reação em seu local de trabalho aos ataques com nove mortos. Enquanto observava seus colegas do escritório de advocacia fazendo café e conversando como se fosse apenas mais um dia de trabalho, ela sentiu como se vivesse em um mundo diferente de seus colegas brancos.
Tesfaiesus conta que aquele foi o momento em que soube que precisava fazer uma mudança fundamental em sua vida.
— Senti que estava contra a parede e que simplesmente não consegueria continuar — diz.
Menos de dois anos após os ataques mortais em Hanau, em fevereiro de 2020, Tesfaiesus foi eleita para o Parlamento alemão em setembro deste ano, como membro do Partido Verde, com um slogan de campanha de “coragem para mudar” e se tornando a primeira mulher negra na Alemanha a ocupar uma cadeira no Bundestag.
Tesfaiesus, de 47 anos, nasceu onde hoje é a Eritreia e chegou à Alemanha Ocidental ainda criança, na década de 1980, numa época em que o país ainda estava dividido. Nas mais de três décadas desde então, a Alemanha passou por uma enorme transformação: a unificação e a chegada de milhões de novos residentes, à medida que o país se tornava o segundo maior destino de migrantes do mundo, depois dos Estados Unidos.
Durante esse período de mudanças, a Alemanha também tornou mais fácil para residentes nascidos no exterior e seus filhos nascidos na Alemanha se tornarem cidadãos, mas obstáculos permanecem.
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Desde a eleição de setembro, tem havido negociações para formar uma coalizão governamental de centro-esquerda que incluiria os social-democratas e o Partido Verde de Tesfaiesus. Se essa coalizão assumir o poder, um dos objetivos dela seria a remoção de algumas barreiras à naturalização — como restrições à dupla cidadania — que impedem milhões de pessoas de votar e não permitem que a política alemã reflita a diversidade étnica e racial do país.
Além dessas mudanças, Tesfaiesus diz que também deseja usar seu perfil nacional para mostrar às pessoas que, como ela, “não se parecem alemãs”, que têm um lugar na sociedade e na política do país. Ela também espera que sua evidência encoraje mais alemães a aceitar uma realidade que muitos evitam e que continua sendo um tabu para muitos políticos: que a Alemanha é um país de imigração.
— Quando um quarto da população é de origem imigrante, é preciso realmente ficar de olhos muito fechados para dizer que não é esse o caso — afirma.
O sentimento de uma sociedade não totalmente disposta a aceitar a ela e à sua família tornou-se especialmente agudo nos dias e semanas após os ataques de Hanau, diz Tesfaiesus. Muitos dos que foram baleados na ocasião eram cidadãos alemães que, como seu próprio filho de 10 anos, foram vistos por alguns como estrangeiros devido à cor da pele.
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Enquanto considerava se candidatar ao Parlamento, ela conta que ficava pensando também no acerto de contas que enfrentaria com o filho se não respondesse aos ataques.
— Queria poder responder que não apenas “fui trabalhar e ganhei dinheiro” quando ele me perguntou o que eu fiz para impedi-los. Queria poder dizer que tentei melhorar o futuro dele. Poderia ter sido ele sentado naquele lugar — acrescentou.
Tesfaiesus havia entrado na política apenas há alguns anos quando ficou evidente que o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (em alemão “Alternative für Deutschland”, sigla AfD) entraria na Câmara Municipal de Kassel, cidade onde ela morava e trabalhava como advogada, lidando principalmente com casos relacionados à imigração.
A decisão, em 2015, da chanceler Angela Merkel — que vai deixar o cargo após 16 anos como líder do país — de permitir a entrada de mais de um milhão de imigrantes alimentou o crescimento da AfD em toda a Alemanha. Tesfaiesus queria enfrentar essa força crescente cara a cara.
— Quando o AfD entrou na Câmara Municipal, queria que a primeira mulher negra estivesse sentada lá também — conta.
Em 2016, ela começou a servir na Câmara Municipal de Kassel, onde apoiou a legislação antidiscriminação munida do seu conhecimento em primeira mão de como o racismo afeta a vida diária na Alemanha.
Os lojistas ainda a seguem com frequência. Quando ela ligava para conversar sobre apartamentos, eles repentinamente ficavam indisponíveis após mencionar somente o nome de solteira, apenas para ficarem disponíveis novamente quando seu marido alemão ligava.
Ela chegou à Alemanha em 1984, aos 10 anos, quando a família buscou asilo depois que a polícia etíope veio em busca do pai, apoiador da independência da Eritreia, conquistada em 1991.
Crescendo na Alemanha, ela ficava acordada até meia-noite para assistir à MTV só para ver um negro na televisão.
— Você pensava: ‘Finalmente uma pessoa negra!’ Mas ainda havia complexos: ‘Eu não sou americana. Essa não é a minha cultura’ — conta.
Mesmo antes de se formar no ensino médio, ela decidiu seguir uma carreira que lhe permitiria retribuir parte da ajuda que recebera de professores e grupos religiosos na infância e se inscreveu para estudar direito com a intenção de se especializar em casos de refugiados.
Há 25 anos, ela enfrentou uma decisão importante na vida: se ela se tornaria cidadã alemã ou não. Tesfaiesus não acreditava que a cidadania mudaria como as pessoas a viam.
Com informações do jornal O Globo e The New York Times