
Empreendedores e ativistas organizam passeios turísticos em São Paulo para mostrar como a presença negra foi apagada ou minimizada em vários locais históricos. Os roteiros incluem lugares de resistência, venda, tortura ou execuções de escravizados que possuem sinalizações discretas ou nem isso. É o registro de uma história apagada. Estátuas negras também estão em posição de inferioridade: além de raras, elas são menores que as outras.
Isabella Santos está nessa gama de empreendedores. Desde 2015, ela conduz o Sampa Negra, um tour que pretende trazer a perspectiva negra de memórias e da história de São Paulo.
Com o desejo de unir turismo e educação, ela desenvolveu o passeio ao estudar as memórias de pessoas pretas na cidade de São Paulo, buscando respostas sobre sua ancestralidade e de outros povos.
Eu percebi uma história contada a partir dos avanços bandeirantes e já tinha entendido que não era um símbolo heroico. A história das comunidades negras eram contadas apenas a partir da escravidão. As pessoas foram escravizadas, mas não nasceram nessa condição”, afirma.
No início, em 2014, o projeto era feito em parceria com instituições de cultura, como a secretaria de cultura da cidade de São Paulo, mas depois passou a ser oferecido somente pela turismóloga.
História negra de São Paulo
Isabella conta que, a ideia inicial do projeto era ir do “Rosário ao Rosário”: começava na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no bairro da Penha, na zona leste, e ia até a igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Largo do Paissandu, no centro da capital.
Durante o período colonial, quando chovia e a colheita era boa, as pessoas iam de uma igreja a outra para agradecer. No tour, o trajeto seguia pela Avenida Celso Garcia.
O grupo também visitou o Parque São Jorge, no bairro do Tatuapé. “Mostrei a importância dos movimentos negros e qual o papel do Corinthians para a periferia. É um lugar extremamente importante, pois ainda existe a irmandade dos homens pretos”, ressaltou.
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Outro ponto que ela destaca é o Largo do Paissandu, devido à presença de maracatu, capoeira, congada e moçambique. Mas isso era visto como atos marginalizados.
O próprio escritor Mário de Andrade via com muito apreço a cultura negra e ficava olhando da janela. Ele testemunhou o samba feito por negros e muitos deles eram presos”, destacou.
Da Liberdade ao Bixiga
Hoje trabalhando de forma independente, Isabella oferece diversos tipos de passeios. Os principais passam pelo Bixiga, centro da cidade e Liberdade. E é neste último que ela revela aprendizados incríveis que, muitas vezes, não fazem parte do contexto tradicional de aprendizado.
A Liberdade, além de ser um tradicional bairro japonês, abrigava o primeiro cemitério popular, conhecido como cemitério dos negros. “É um dos bairros mais pretos da cidade”, conta. Ainda na região, a guia também leva o turista para conhecer o antigo Pelourinho.
No Largo São Bento, ela explica o desenvolvimento e criação do hip hop em São Paulo. Passando pelos estilos musicais, também é possível entender por que o samba paulista é forte no centro da cidade e no bairro da Barra Funda, mais precisamente no Largo da Banana.
Já o Bixiga, majoritariamente italiano, também é, segundo ela, o berço do quilombo. “Por isso que a Vai Vai, uma das escolas mais tradicionais da cidade de São Paulo, tem sua sede lá”, afirmou.
Neste tour, há ainda a oportunidade de conhecer a pastoral afro dentro da igreja da Achiropita, que faz batizados com rituais afrocatólicos.
Muitas vezes, quando existem datas comemorativas, ela direciona o passeio dessa forma. Foi o que ocorreu em 2 de fevereiro, dia de Iemanjá, quando Isabella conduziu um tour sobre os rios e águas na cidade.
Com a retomada do turismo e controle da covid-19, a turismóloga pretende estender o tour para outros estados, como Bahia e Rio de Janeiro.
Atualmente, existem duas saídas no mês, custa R$ 80 e é oferecido para até 15 pessoas. Mais informações em https://www.instagram.com/sampanegra/.
No Brasil todo
Iniciativas semelhantes se multiplicam no País. Nos passeios que conduz em Salvador (BA), a guia de turismo Sayuri Koshima mostra a escultura de Tomé de Sousa, o Elevador Lacerda, mas é obrigada a emendar. “Nada aqui conta a história negra”.
Com quatro mil pessoas cadastradas e presença de 145 cidades, a plataforma Diáspora Black oferece opções com experiências afrocentradas, como vivências em quilombos no Brasil. Uma das opções mais buscadas no Rio é a Pequena África. Berço do samba e da resistência negra, a região também é sede da Casa da Tia Ciata, “capital” da Pequena África desde os tempos coloniais. Mesmo com foco no turismo da cultura negra, Carlos Humberto Silva, um dos fundadores, diz que a plataforma é aberta para todos e que 20% dos cadastrados são não negros.
“A obrigatoriedade ao ensino da história afro-brasileira e indígena é uma forma de combater esse apagamento, mas há muito a ser feito”, afirma a turismóloga Thaís Rosa Pinheiro, especialista em História da África e Afro-brasileira e que está à frente da agência Conectando Territórios. “O turismo tem esse papel que pode aliar com a educação e aproximar mais as pessoas da história afro- brasileira visitando lugares de memórias e experienciando a cultura”, completou.
Em Santa Catarina, a agência Ubuntu combina roteiros tradicionais e afrocentrados. Uma das iniciativas é preparar as comunidades quilombolas do Largo da Conceição, em Florianópolis, para explorar o potencial turístico da região. “Um dos nossos objetivos é intensificar o afroturismo em Santa Catarina”, explicou Luciano Machado, proprietário da agência.
Especialistas também identificam o apagamento negro também nos registros historiográficos. O historiador Elton Soares de Oliveira, autor do livro Origens da presença negra em Guarulhos – a África em nós, mostra a importância dos negros na formação do povo de Guarulhos, na grande São Paulo. Na obra, ele destaca a primeira lavra de ouro do Brasil, de 1589, onde foi encontrada uma cerâmica de origem africana, com traço incísico, ou seja, com uma ponta de madeira para fazer o desenho.
“A mineração em Guarulhos antecede Minas Gerais em mais de 100 anos. Os indígenas não tinha hábito de escavar o ouro. Essa tradição está presente na África. Quem descobre o ouro em Minas são aqueles que já haviam feito a descoberta em São Paulo, com contribuição direta dos escravizados”, argumentou o historiador.
A procura pelos passeios históricos vem aumentando, principalmente no mercado corporativo. O Guia Negro contabilizava dois passeios por mês antes da pandemia. Agora, eles são feitos todos os finais de semana. O número de empresas atendidas passou de duas para dez por mês.
O Diáspora Black anuncia um crescimento de 234% em clientes desde 2020, número influenciado diretamente pelo crescimento de eventos on-line, como oficinas e palestras sobre diversidade e cultura negra. Na Bahia, Sayuri conta que o roteiro negro é o mais vendido entre os turistas. Ela recomenda que cada viajante procure conhecer a história negra e indígena de todo lugar que visitar, além dos relatos oficiais.
Desapropriação do terreno é para criar Memorial
Sobre a criação do Memorial dos Aflitos, na Liberdade, a Secretaria Municipal de Cultura informa que “aguarda a conclusão do processo de desapropriação do terreno, ao lado da Capela dos Aflitos, e a imissão de posse para o lançamento do edital de concurso para selecionar e premiar um projeto de arquitetura para a construção do Memorial”.
Para diminuir a diferença entre o número de estátuas de figuras brancas e negras na cidade, a pasta informa que “foram contratados cinco escultores negros que estão desenvolvendo cinco esculturas em homenagem a personalidades negras, que ficarão dispostas em diferentes locais nos espaços públicos, de acordo com a referência, história e vivência de cada uma delas. Uma produtora negra produzirá seis web documentários sobre o processo de concepção das esculturas.
As estátuas são do cantor e compositor Geraldo Filme, referência do samba e do carnaval de São Paulo; a escritora Carolina Maria de Jesus, uma das mais lidas no Brasil; Adhemar Ferreira da Silva, primeiro bicampeão olímpico do país; Deolinda Madre, Madrinha Eunice, referência por sua militância e precursora do samba paulistano; o cantor e compositor Itamar Assumpção.
Para dar mais visibilidade às histórias e culturas negras, a pasta informa que investe em projetos artísticos e de formação cultural por meio de editais com pontuação específica para candidatos negros. Além disso, a pasta afirma que possui equipamentos temáticos, como a Casa de Cultura Hip Hop Leste, na Cidade Tiradentes; a Casa de Cultura Hip Hop Sul, na Vila São Pedro, e a Casa do Sítio da Ressaca (Jabaquara), entre outros.
Com informações do Estadão e do Uol