
O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, considera “terrivelmente injusto” o Brasil ser visto como ameaça global por ter se tornado o epicentro da pandemia da Covid-19, com recorde de novas mortes e infecções pelo coronavírus e celeiro de uma cepa com maior poder de transmissão. A declaração do chanceler ocorreu em uma entrevista exclusiva ao jornal O Estado de S.Paulo publicada na segunda-feira (22).
Confira alguns trechos da entrevista:
Brasil é ameaça mundial por descontrole de pandemia
O alerta de que o descontrole da Covid-19 no Brasil poderia colocar em risco o resto do mundo foi feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no início do mês. Araújo considera “discriminação” com o Brasil.
“Acho que isso é, antes de tudo, terrivelmente injusto, porque surgiram cepas em outros lugares. O próprio vírus surgiu na China e ninguém está falando na China como uma ameaça nesse sentido. As pessoas até falavam, mas vamos falar das novas cepas. Surgiram no Reino Unido e na África do Sul. E ninguém diz que o Reino Unido e a África do Sul são ameaças globais. O Brasil está com números altos, claro, infelizmente.”
Araújo admitiu que o país está sendo golpeados pela Covid-19. Ele considera que está havendo uma visão um discriminatória em relação ao Brasil. Ele comenta que a percepção é que as variantes brasileiras são uma ameaça, enquanto de outros países, não.
“A gente pode fazer o que está sendo feito. Acelerar o processo de vacinação, estamos conseguindo vacinas de várias frentes possíveis. É importante que haja esse escrutínio mundial, mas que seja baseado nos fatos, e não nessa percepção de algo fora do controle, que o Brasil está sendo uma fonte de problemas. Acho que isso não corresponde à realidade, porque não bate com aquilo que se diz de outros países.”
Risco de brasileiros sofrerem xenofobia
Questionado sobre se, além da restrição de circulação de brasileiros mundo afora, há risco da população ser vítima de xenofobia, Araújo descartou essa possibilidade. Ele afirmou que formadores de opinião brasileiros estão “amplificando” o problema e ajudando a criar um clima anti-Brasil ao redor do mundo por finalidades políticas.
“Eu acho que existe um esforço de antipropaganda por parte, infelizmente, de certas correntes no Brasil, certos formadores de opinião. Que não ajuda nada e não ajuda a conter a pandemia, não ajuda nos esforços que nós estamos fazendo. Ajuda, talvez, a criar um clima negativo. Acho que não chegaria a esse ponto de xenofobia contra brasileiros. Mas, sim, ajuda a criar um… No fundo, é uma “oikofobia”, uma raiva de si mesmo. Em vez de ser contra o estrangeiro, é contra o próprio nacional. Tem pessoas aí que praticam essa “oikofobia” e querem destruir aquilo que a gente está fazendo.”
A pedido de ser mais específico na declaração, o chanceler disse que constatou tal “oikofobia” a partir da percepção de comentários nas redes sociais. Ele citou mensagens que informam que o presidente não tem sido capaz de lidar com a gravidade da pandemia e que o Brasil se transformou em uma ameaça mundial.
“Isso está sendo criado, em grande parte, por pessoas aqui que têm interesse em ‘denegrir’ tudo que o presidente faz, tudo que nós fazemos no governo. Acho que isso cria uma ressonância para um problema que é sanitário, que as pessoas têm que tratar da maneira que se pode, que o mundo inteiro está enfrentando. Como você vê, os números têm situações similares em vários outros países.”
Brasil, epicentro da Covid-19
Nenhum país está crescendo na média de casos/mortes diárias como o Brasil. Araújo admite os números, mas ameniza a inércia do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
“Sim, em números absolutos, sim. Isso, claro que a gente se preocupa, e somos os primeiros a querer controlar isso. Isso não é razão para que se desconheça tudo que está sendo feito em termos de vacinação, sobretudo. E que se crie essa ideia de que nada está sendo feito e que o Brasil é uma ameaça. “
Questionado se mudou de opinião sobre declaração dada no dia 5 de março, durante o Conselho das Américas, de que o sistema de saúde estava suportando bem a pandemia, Araújo admitiu ter mudado de percepção e que houve piora da pandemia nas últimas semanas. Ainda assim, ele não admite que o sistema de saúde brasileiro esteja em colapso.
“Falar de colapso ou não é diferente. Tenho procurado dizer isso, sobretudo, na cena internacional. Claro que a questão são os números, mas as palavras às vezes tem muita força, mais do que os números. Falar de colapso pode dar uma ideia distorcida da realidade. O que é um colapso? É uma questão de gradações, né? O conceito do que é entrar em colapso ou não. Não quer dizer que a gente seja indiferente, muito pelo contrário, de nenhuma maneira desprezo aquilo que as pessoas estão vivendo em termos de disponibilidade de UTIs.”
Ele falou ainda que o assunto demanda um debate que não cabe a ele fazer sobre o que poderia ter sido feito em termos de preparação nos Estados, os leitos de UTI. Araújo afirmou ainda que, por outro lado, é preciso estar aberto às necessidades das pessoas sem recursos.
“.. a gente vê cenas de pessoas tentando vender frutas nas calçadas, empresas… Isso dá um desespero, dá uma angústia muito grande. As pessoas precisam de leito na UTI, mas também precisam de alguma expectativa de poder levar o pão para casa.”
Atraso na compra de vacinas
Perguntado sobre se o governo Bolsonaro errou ao não fechar mais cedo contratos para a compra de vacinas contra a Covid-19, o chanceler respondeu que não.
“Eu acho que desde o começo houve uma estratégia a meu ver muito bem conduzida pelo Ministério da Saúde. E que está nos dotando de uma capacidade equivalente a… Claro, inferior a de alguns países, que saíram na frente, como Chile, Israel, Estados Unidos e Reino Unido. Mas estamos em um ritmo equivalente a vários países europeus, a países das Américas como México e Canadá, países de dimensões semelhantes ao Brasil em termos de território e população.”
O chanceler afirmou que é necessário olhar o quadro mundial. Para ele, o Brasil está relativamente bem, embora gostaria que estivesse melhor. Ele nega que haja problemas na condução da pandemia da Covid-19 no país. Afirma ainda que há diferença entre contratar e obter vacinas.
“Estamos sofrendo atrasos. Como o mundo todo. Lá atrás, opções diferentes de contratação não necessariamente estariam se refletindo num ritmo diferente de vacinação agora. Tem não só o recebimento das vacinas como a preparação logística, que no nosso caso, num comparativo com o mundo, é excelente, para um país no nível desenvolvimento que nós temos.”
Apelo de Lula a Biden por reunião do G-20
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um apelo na TV estadunidense e propôs a Joe Biden a ideia de reunir o G-20 para discutir a distribuição de vacinas. Para Araújo, há uma uma confusão mental e de temas.
“Uma coisa são os países que não têm hoje condições de comprar vacinas e que esperavam mais dos países desenvolvidos. A gente viu muito em dezenas de reuniões virtuais ao longo do ano passado, muita repetição do conceito de solidariedade, todo mundo dizendo que é preciso solidariedade, e do ponto de vista da maioria dos países sem recursos, essa solidariedade ainda não chegou. Eles não estão recebendo vacinas. Os países europeus, os Estados Unidos, com mais recursos, têm dado preferência total à vacinação de suas populações, o que está muito bem. Mas muitos deles falavam em solidariedade e não estão aplicando. A nossa situação é diferente, a gente tem recursos, graças a Deus, felizmente, para aquisição de vacinas, o problema é a disponibilidade.”
O chanceler comentou ainda sobre a capacidade de Lula em liderar algum esforço diplomático que faça sombra ao presidente Bolsonaro. Para ele, o ex-presidente não tem credibilidade nem legitimidade para liderar o que quer que seja.
Relações entre Bolsonaro e Biden
Questionado sobre a participação de Bolsonaro na cúpula sobre clima que Biden promoverá em abril, Araújo confirmou a presença do presidente brasileiro.
“Os americanos querem que essa cúpula seja um momento de mensagens fortes do que os países podem fazer na área ambiental. As conversas estão indo bem. Como ainda está em andamento, não queria mencionar em detalhes, mas garanto que tem sido extremamente positivo e acho que está sendo claríssimo que o Brasil tem disposição total de contribuir para esse esforço mundial de redução de emissões e para mostrar que temos capacidade de controlar totalmente o desmatamento ilegal e o uso sustentável de nossos recursos.”
O ministro das Relações Exteriores comentou ainda que quando Biden assumiu a expectativa era de que a questão ambiental seria um grande problema entre Brasil e EUA. Para ele, esse é o tema que tem unido os governos Bolsonaro e Biden. Com o início dos diálogos sobre meio ambiente, avaliou Araújo, foi dissipada a ideia de que os dois países estariam em campos opostos.
“O Biden assumiu, é o presidente e trabalhamos com ele e toda a sua equipe. Temos toda a condição de produzir resultados positivos, estamos vendo isso já se materializando. Vamos começar a falar da dimensão comercial também. Eu terei proximamente contatos com a nova representante de comércio dos EUA, que foi confirmada pelo Senado. Essa parte não está esquecida. Os pilares que estamos construindo com os EUA são permanentes. Defesa da liberdade e democracia, aproximação econômica. Temos claro uma diferença enorme de poder, mas os EUA nos veem como parceiro fundamental em muitos temas, dentre eles esse do clima, mas não só. O bom diálogo que estamos tendo na questão climática e ambiental vai ajudar a alavancar outras questões.”
Sobre a possibilidade de uma reunião bilateral com Biden, o chanceler admitiu não ter resposta ainda.
“Não sei, ainda não saiu a programação da Cúpula. Se for presencial vai haver muitos chefes de Estado, não sei se haveria a oportunidade. A troca de cartas entre os presidentes manifestou uma boa vontade muito grande.”
Com relação à medida de Biden de vincular a mudança climática à segurança nacional e a proposta dos britânicos de debater o assunto no Conselho de Segurança da ONU, o ministro amenizou a importância do assunto.
“Não temos preocupação com isso, porque tenho certeza que o Brasil jamais será, certamente não no nosso governo, um país cujas políticas sejam deletérias aos objetivos da convenção do clima. Pelo contrário, a gente pode não só não prejudicar, como pode ajudar muito.”
Araújo afirmou que o Brasil é responsável por menos de 3% das emissões mundiais. Avaliou que as emissões provenientes do desmatamento no Brasil representam cerca de 1,5% das emissões mundiais.
“Nosso compromisso é justamente não só de conter o desmatamento, mas de ter soluções que possam ajudar os outros 98,5% a reduzir suas emissões. Apresentamos o compromisso de neutralidade de carbono até 2060, podemos ter antes se houver financiamento. O esforço nacional existe, é consistente, mas é um desafio imenso por causa das circunstâncias da Amazônia. O necessário são recursos que nós possamos administrar.”
O chanceler comentou sobre a possibilidade de o Brasil apoiar a vinculação da mudança climática como ameaça à segurança. Ele admite que é uma perspectiva que está sendo introduzida e que o país está pronto para enfrentar essa questão.
“Qualquer tema dessa magnitude afeta a segurança, assim como nós achamos que o crime organizado afeta a segurança, o crescimento econômico afeta a segurança. Tudo tem que ser visto em conjunto. Isso é uma maneira de conscientização. Existe muita cobrança da opinião pública nos países desenvolvidos sobre o tema das emissões. Os temas de segurança evoluem, as ameaças evoluem, então é importante que haja uma discussão conceitual sobre como surgem essas diferentes ameaças, como de repente mudanças climáticas podem ser de repente uma ameaça à segurança. A discussão conceitual, com base em fatos, não tem problema. Na prática não vemos nenhum problema para nós e nem para o mundo. O mundo está procurando maneiras de enfrentar a questão da mudança climática. A gente está pronto para participar desse debate.”
Confira a entrevista completa aqui.
Com informações do Estadão