
A conquista do primeiro ouro pelo Brasil nas Olimpíadas de Tóquio causou comoção. O motivo, além dos desafios vencidos diariamente pelos atletas, é pelo surfista Ítalo Ferreira ter aprendido a surfar nas tampas de isopor usadas por seu pai, um vendedor de peixes de Baía Formosa (RN). Entre as décadas de 1920 e 1930, contudo, a vitória de um filho de trabalhador da periferia do capitalismo não era novidade. Isso porque no período foi realizada uma competição organizada por socialistas e comunistas: as Olimpíadas dos Trabalhadores.
De acordo com Gabriela Leite, editora, designer e produtora audiovisual do Outras Palavras, as competições foram uma resposta “notável” aos jogos tradicionais, nascidos em 1896 pelo barão Pierre de Coubertin.
“A prática de esportes, era, na virada do século 19 para o 20, restrita às classes altas. Servia para propagar valores do conservadorismo. O célebre barão, fundador do Comitê Olímpico Internacional (COI), é uma boa figura para entender os ideais burgueses da época.
O nobre francês acreditava na superioridade racial europeia, e se atormentava com a ideia da participação feminina nas competições. Para ele, a mulher era “acima de tudo companhia para o homem, a futura mãe de família”, e deveria “ser criada tendo esse destino em mente”.
Embora sustentasse “ideais internacionalistas”, Coubertin não hesitou em elogiar o grande êxito das Olimpíadas de 1936, na era Hitler, saturadas de imagens da suástica e de saudações nazistas: ‘o grandioso êxito dos Jogos de Berlim contribuiu de modo magnífico para com o ideal Olímpico’”, narra.
No início do século 20, porém, começaram a despontar jogos olímpicos “dissidentes”, com organizações de trabalhadores para a prática coletiva de esportes.
“Até que, em 1920, representantes de organizações esportivas proletárias da Alemanha, Inglaterra, Bélgica, França e Áustria se reuniram para formar uma associação internacional. Assim foram criadas as Olimpíadas dos Trabalhadores, que aconteceram de maneira intermitente entre os anos 1925 e 1937, em diversos países da Europa”
Gabriela Leite
Alternativa socialista à burguesia
A alternativa socialista para as olimpíadas burguesas não fazia a separação por países – hasteava-se apenas a bandeira vermelha, conta Gabriela Leite. Nas primeiras edições, que aconteceram em fevereiro e julho em cidades da Alemanha, compareceram mais de 150 mil pessoas, entre atletas e público.
“O número foi superado em 1931, na Áustria, quando 250 mil espectadores acompanharam o evento protagonizado por 100 mil esportistas – dez vezes mais atletas que no Rio-2016 ou Tóquio-2021. A explicação para o disparate é simples. O evento era aberto e contava com a participação em massa, não chamava apenas ‘os melhores’”, afirma.
A edição foi a mais emblemática das Olimpíadas dos Trabalhadores. Foi realizada em Viena, que era uma das maiores fortalezas do movimento socialista.
“Milhares de atletas de dezoito países se reuniram na capital austríaca para participar de competições em modalidades como atletismo, futebol, esportes militares [como cabo de guerra…] e até xadrez. Os exercícios de ginástica em massa, desfiles e outros eventos reuniram cerca de 80 mil participantes”, conta matéria assinada por Gabriel Kuhn e Georg Spitaler, na revista Jacobin Brasil.
Olimpíadas dos Trabalhadores reúne mais pessoas
A edição popular superou tanto em número de atletas quanto de espectadores à comercial, sediada àquele ano na cidade de Los Angeles, nos EUA.
Gabriela Leite afirma que os “jornalistas retomam o espírito da época”.
“O movimento esportivo dos trabalhadores representava um contra modelo pedagógico aos esportes organizados por burgueses e capitalistas – tanto os jogos organizados pelo Comitê Olímpico Internacional quanto as ligas esportivas profissionais, como fizeram no futebol. Nessa visão, os danos e os limites impostos à vida da classe trabalhadora pelas más condições de vida e de trabalho deveriam ser contrabalançados pelo desenvolvimento físico individual e pela formação coletiva de uma identidade de classe autoconfiante”, Gabriel Kuhn e Georg Spitaler, ainda na Jacobin Brasil.
Versão olímpica antifascista
A editora afirma que “a edição seguinte dos jogos olímpicos – da burguesia – aconteceria em 1936. O contexto político de ascensão do nazismo fez com que uma organização comunista, Sportintern, formada a partir da associação esportista de trabalhadores, se levantasse em protesto. Eram tempos da Revolução Espanhola.”
Com isso, aproveitando a vitória eleitoral da frente de esquerda na Catalunha, elegeu-se Barcelona como sede da versão antifascista das Olimpíadas.
“Foram recebidas com tanto entusiasmo pelo público mundial que a data de início teve de ser adiada. Esperavam-se exilados alemães e italianos, e um time judeu foi criado especialmente para o acontecimento”, conta Gabriela.
Golpe de Estado
As mulheres eram preteridas nos jogos tradicionais, mas o comitê de organização clamava pela participação das mulheres. Os participantes eram financiados por sindicatos e vaquinhas. Como nas edições anteriores, atletas acomodariam-se nas casas de família da classe trabalhadora, em prédios públicos ou em acampamentos. A delegação espanhola foi apresentada lado a lado com times próprios catalães, bascos e galegos. Mas os jogos olímpicos populares daquele ano acabaram não acontecendo.
“Em 18 de julho de 1936, enquanto milhares de atletas de todo o mundo chegavam a Barcelona para os jogos do dia seguinte, um golpe de estado foi realizado pelas forças conservadoras e fascistas espanholas. Os jogos foram cancelados e quase todos os atletas que conseguiram chegar foram mandados de volta para casa. Cerca de 200 estrangeiros, entre atletas, seus representantes e espectadores, decidiram ficar e lutar ao lado dos catalães e espanhóis, ingressando posteriormente nas Brigadas Internacionais”, conta matéria da revista britânica Red Pepper.
Olimpíadas dos Trabalhadores não davam lucro
“As últimas olimpíadas populares aconteceram em 1937 na Tchecoslováquia e na Bélgica. As edições seguintes, de 1943, seriam recebidas em Helsinque, na Finlândia (Tóquio, aventada, rejeitou o convite), mas foram canceladas após o início da II Guerra Mundial. Ao contrário das lucrativas olimpíadas burguesas, os jogos populares não conseguiram se reerguer no pós-guerra”, conta a editora.
Olimpíadas no Rio deram lucros exorbitantes
“Em 2016, os Jogos Olímpicos ocuparam as ruas, praias, ginásios e estádios do Rio de Janeiro. Enquanto contribuíam para aprofundar as desigualdades da cidade, intensificar a especulação imobiliária e reprimir manifestações, registravam a marca de evento mais lucrativo para o Comitê Olímpico Internacional em 120 anos: apenas com a venda dos direitos de transmissão dos jogos, por 19 dias, foram arrecadados 4 bilhões de dólares. Já as patrocinadoras principais tinham, juntas, valor de mercado de mais de U$ 1,5 trilhão. Cifras que provavelmente encheriam de orgulho o barão de Coubertin”, diz Gabriela Leite.
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Com isso, ela se questiona: “como nos anos anteriores à II Guerra, nos deparamos com o dilema: torcer ou não torcer por atletas que apoiam o governo de Jair Bolsonaro, que confraterniza com nazistas, considera indígenas uma “raça” inferior e foi responsável pela morte de mais de 550 mil pessoas numa pandemia? E pior: como alegrar-se tranquilamente com a realização de um evento internacional durante uma crise sanitária que exige medidas de distanciamento que, caso ignoradas, podem criar novas variantes de um vírus mortal? Antifascistas, feministas, populares e politizadas, as Olimpíadas dos Trabalhadores podem servir de inspiração de celebração da cultura e do esporte sem render-se ao dinheiro e à espetacularização a qualquer custo”, conclui.
Com informações do Opera Mundi