
A sociedade capitalista não é neutra quanto ao gênero. A burguesia criou algo até então inédito em outras formas de patriarcado que antecederam o capitalismo: o binarismo que cinge as existências humanas em masculino e feminino por meio de narrativa de gênero. É o que afirma Taylise Leite, professora, pesquisadora e feminista marxista.
Ela foi a convidada do Moda e Política desta semana, que debateu ‘Feminismo Marxista e a Moda’.
Taylise é doutora em Direito Político e Econômico pela Mackenzie, mestra e graduada em Direito pela Unesp e com especialização pela Escola Paulista de Direito. Tem experiência na área de Direito Público, com ênfase em Direito Penal, Direito Constitucional e Direitos Humanos. É também pesquisadora na área de Teoria e Filosofia do Direito e atua, principalmente, nos temas: Direitos Humanos, Criminologia, Gênero, Bioética e Teoria Crítica.
É autora da obra ‘Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e marxismo feminista’, que investiga as ideias de Roswitha Scholz sobre as lutas feministas e as lutas marxistas de superação do capitalismo.
O Moda e Política ocorre a cada 15 dias. A cada episódio um convidado diferente aborda as principais questões que envolvem o mundo fashion com olhar político sobre o que se passa em toda a cadeia de produção – do cultivo e processamento de fibras passando pelo vestir até o descarte de peças.
As entrevistas são conduzidas pela secretária de redação do site Socialismo Criativo, Iara Vidal. A jornalista é pesquisadora independente dos encontros da moda com a política e representa o movimento Fashion Revolution em Brasília. Ela é modativista para que a produção seja justa, ética e consciente. E que preze pelas pessoas e pela natureza acima do lucro.
Feminismo x capitalismo
Taylise observa que Roswitha Scholz é uma autora muito avançada na compreensão do capitalismo no século XIX.
“Roswitha faz uma abordagem de gênero que fala que o valor que aglutina as outras formas da sociedade capitalista não é neutro quanto gênero. Foi desde sempre marcado pelo gênero masculino”
Taylisi Leite
A pesquisadora exemplifica com estereótipos de gênero como o homem ter que ser forte, violento e promíscuo. Às mulheres, ficam reservados papeis de emotiva, enganável, tola devido à suposta sentimentalidade, ou que usa sua sensualidade para tirar o “homem do seu juízo”.
“Ao mesmo tempo em que é carinhosa, cuidadosa. Então, o auge para a mulher é a maternidade”, afirma Taylise.
Essa diferenciação, no entanto, tem aspectos práticos que estão na base do capitalismo, que é a abstração do trabalho.
“Tarefas essenciais para a humanidade continuar produzindo como comer, dormir e cuidados com a higiene, nunca foram consideradas trabalho. O capitalismo chamou essas atividades de tarefas femininas obrigatórias”, lembra.
A mulher deve ser ‘direita’, o que para além de sua vida sexual, significa o combo casamento heteronormativo, monogâmico e que inclui todas as tarefas ligadas à reprodução.
“É o que Roswitha Scholz chama de sombra do valor. Essa é a clivagem, o valor dissociado. Ela mostra como o capitalismo se estruturou não só como modo de produção, mas como totalidade social, psíquica, social, econômica simbólica, politica nesse patriarcado especifico. Daí que a teoria dela é diferente de tudo o que já se viu”, explica Taylise.
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Crítica à esquerda
Para Taylisi, o novo marxismo da segunda metade do século XX tem uma visão mais amadurecida do sistema. Porém, as rápidas transformações pelas quais o mundo passa diluiu a luta de classes e formou uma grande classe média.
O que é marcado cada vez mais por múltiplos movimentos identitários que, segundo Taylise, acreditam que os problemas da sociedade podem ser resolvidos “mudando nossas roupas, nosso modo de falar, de nos expressarmos”.
“Os culturalistas acreditam que mudando a cultura, muda o mudo. Nós (marxistas) entendemos que há uma materialidade estruturante que está conectada com essa forma perversa de produzir as coisas: que destrói a natureza e as humanidades. É estruturalmente racista, machista e que sempre vai romper com os mais frágeis. Se a gente não romper com isso, a gente só vai ter pluralidade de gênero, mas vai continuar repetindo a mesma lógica destrutiva. Não entender o problema da estrutura faz com que muitos desses movimentos caiam nessas armadilhas do capitalismo e no fundo acabem reproduzindo mais capitalismo”
Taylise Leite
A jornalista Iara Vidal acredita que a representatividade, dentro do capitalismo, favorece a criação de nichos de mercado. Algo semelhante ao que acontece com a dita moda ‘sustentável’.
“É impossível existir qualquer coisa sustentável no modelo capitalista. Embora a humanidade há muito se vista, foi com a burguesia a estruturação do sistema de moda”, afirma.
Para Taylise, “falta marxismo. Falta compreensão da materialidade, da estrutura do capitalismo” aos campos de esquerda.
Capitalismo mudou o modo de vestir
Taylise observa que antes as pessoas vestiam roupas de acordo com sua posição, não por divisão de genêro.
“No nosso tempo, a roupa marca o gênero fortemente por causa dessa necessidade do patriarcado capitalista em fazer essa cisão entre aquilo que entrou na forma do trabalho abstrato, narrado como masculino, e o que foi expurgado pra nunca ser assalariado, como o feminino”, afirma.
Por isso, ela trata o capitalismo como uma ‘totalidade’. Ao mesmo tempo que é um sistema econômico de produção de riqueza que se lastreia na forma mercadoria, é um sistema social, de cultura, de práticas, papeis de gênero e estrutura política e jurídica.
“Ele é tudo isso ao mesmo tempo com a marcação da superioridade do masculino sobre o feminino em todas as esferas”, pontua.
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Para Taylise, o capitalismo patriarcal encontra no núcleo familiar heteronormativo a unidade de consumo ideal.
“A mulher é atravessada por narrativas de que precisa ter um homem porque é com isso que ela vai ser reconhecida como ser humano e vai ter participação no mercado, através dele. Em nome de ter esse homem, essa família, ela faz qualquer coisa. Então ela é uma peça importante no mercado dos desejos”
Taylisi Leite
Sentir-se bem
Para Taylise, no entanto, é preciso ver até onde introjetamos e nos apresentamos ao mundo na tentativa de alcançar expectativas criadas pelo sistema para suprir a ele mesmo ou se é para nos sentirmos bem.
“A gente tem que aproveitar os acúmulos tanto do feminismo liberal como do radical. Para tentar se libertar, a gente tá sempre tentando se emular ao masculino e não romper com ele”, ressalta.
Iara Vidal completa.
“A moda é identidade. É o seu jeito de se expressar. A gente tem que se sentir bem. Às vezes, as pessoas confundem critica ao sistema com crítica ao individuo”
Iara Vidal