por: Socialismo Criativo Postado em: 24/01/2019 - 14:32 Atualizado em: 03/03/2020 - 15:25
por Daniel Oliveira em 10/01/2019.
A prática de descartar as fantasias após os desfiles de Carnaval nas escolas de samba é criticada pelo músico e produtor Nikima, ex-vocalista do grupo baiano Lampirônicos, que, no início dos anos 2000, teve sucesso local e uma repentina projeção nacional. Segundo ele, “a gente não sabe manter os mitos”. Na sua mente inquieta e criativa, às vezes “desviante”, uma escolha menos efêmera e mais produtiva tanto do ponto de vista cultural como econômico seria guardar o material num contêiner e levar ao mundo como conteúdo nacional para exportação.

Ex-Lampirônicos Nikima retoma projetos artísticos com a narrativa transmídia “Auss & Auss”.
“Criamos no Brasil uma relação inflacionária com os nossos ativos (culturais) e não construímos uma mítica moderna”, diz, explicando algumas de suas principais reflexões nos últimos anos, que interligam experiências e interesses em criação artística, produção, economia criativa e marketing.
Tais pensamentos se desdobraram, recentemente, no Auss & Auss, projeto de narrativa transmídia (em várias plataformas), uma ficção científica que envolve música, ilustrações, vídeos, games, realidade aumentada, camisas, textos e outros produtos. “A ideia foi criar algo que fosse um ativo permanente”, afirma.
Atualmente vivendo em São Paulo, após passar por Brasília, atuando como assessor de Gilberto Gil no Ministério da Cultura (Minc), e Lisboa, em um período de imersão no universo da música eletrônica, nos livros de filosofia e de “literatura canônica”, parou em Salvador para uma temporada. Num final de semana de novembro, fez show e montou a tenda do Auss & Auss no festival Zona Mundi, no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM).
“Quando comecei a criar o Auss & Auss, liguei vários pontos da minha trajetória. Pensei que era possível desenvolver um conteúdo interativo, seriado, que eu pudesse licenciar e ter a música como um elemento articulador. Auss & Auss é uma franquia de conteúdo e uma franquia de produtos”, afirma. O material está espalhado no site oficial (www.aussnauss.com), em plataformas digitais, em aplicativos e nas páginas em redes sociais. Ao todo, doze capítulos já foram disponibilizados.
Na apresentação oficial do projeto, explicita-se o mote para a construção de todo o enredo: “Como sobreviver ao fim do petróleo e aos efeitos nefastos de uma guerra nuclear sem precedentes? Caos, radioatividade, miséria, violência, frio… tudo poderia ser ainda pior se não existisse a Auss & Auss”.
Na narrativa, Auss & Auss é um conglomerado dos irmãos gêmeos da família Auss que sobreviveu a uma tragédia nuclear na terceira guerra mundial e detém todos os meios de produção. Com o fim do petróleo, eles inventaram um sistema, o Acephalous, que gera energia a partir das experiências e emoções humanas com música e realidade virtual. “ É um universo narrativo que se transversaliza por mídias diferentes de modo complementar”, ressalta.
Pulga atrás da orelha
Durante o final do período que morou em Lisboa, entre 2008 e 2012, logo depois da saída da assessoria do Ministério da Cultura e de uma fase de trabalho com produção na Cinemateca Brasileira, Nikima tinha dúvidas, em seus termos, uma “pulga atrás da orelha”, sobre como retomaria o processo de criação artística. “Estava muito envolvido com produção de política pública e a minha visão interna era muito forte. Já não pensava a música da mesma forma”.
Duas exposições foram decisivas nos seus passos profissionais na direção do projeto atual. A primeira, referente à obra do diretor de cinema Akira Kurosawa, impressionou pela construção dos personagens e pelas fantasias de samurai – daí a ligação com as escolas de samba. O pensamento a respeito da inter-relação entre mitos gregos (dos clássicos), as interrogações sobre os mitos contemporâneos e a necessidade de ter “ativos culturais permanentes” começou a ganhar um melhor contorno, menos confuso.
“Fiquei encantado com as roupas dos samurais. Tinha algo ali que não se perdia. E lembrei que Hitchcock fazia a crítica de como Hollywood não sabia aproveitar as suas produções mais caras para gerar cenários para a produção de filmes B. O pensamento dele questionava: você vai montar uma superestrutura e depois vai jogar tudo fora?”.
Depois, uma sala da Hello Kitty, numa exposição sobre animes japoneses, chamou a atenção. “Eram muitos produtos de uma única personagem (chaveiro, escova de dente etc.), que não tem uma história tão bem definida e consegue faturar bilhões”, explica.
Nikima avaliou que não necessariamente era preciso fazer algo tão agressivo para absolver as qualidades do modelo comercial. “Lembrei que a minha secretaria no Minc tinha várias Hello Kittys na mesa do trabalho. Pensava: ‘Como uma pessoa de 30 anos gosta tanto de um produto como esse?’. E isso me marcou. Há um engajamento aí. Uma dimensão lúdica, psicológica”, opina.
Colaborações
De volta ao Brasil, Nikima se estabeleceu em São Paulo e, de 2012 para cá, tem circulado por diferentes cidades brasileiras em busca de parcerias. “Conversei com muitos agentes, de cada área, da música, do mundo editorial, da moda, do game. Você pode disparar o projeto de várias formas”.
Em Recife, por exemplo, Nikima construiu parceria com empreendedores do Porto Digital, onde o Auss & Auss serviu como case para desenvolvimento de games, aplicativo de realidade aumentada, experiência em realidade virtual, modelagem de figurinos e outros produtos. “Estabelecemos uma relação institucional com o Porto Digital e com o projeto técnico Nave Oi Futuro”.
A temática, de ficção científica, foi escolhida com base na sua visão das relações de troca contemporâneas. “Fiquei pensando num certo distanciamento entre as pessoas. E a ficção científica torna possível trabalhar com clichês para produzir pensamentos críticos”, afirma o multiartista.
Vínculo
Quem acompanhou a cena musical soteropolitana do início dos anos 2000 provavelmente conheceu a banda Lampirônicos, da qual Nikima era vocalista. O grupo estourou em 2001, com a canção Pop Zen, que chegou a ficar entre as 10+ da MTV e, na época, tocou muito nas rádios. De acordo com Nikima, a curva ascendente foi tão rápida quanto a decaída.
“Fomos a primeira contratação do presidente Eboli (José Antonio Eboli) que estava assumindo a Sony para tentar reestruturar a gravadora diante das transformações do mercado. Diria que comecei na era pré-internet. Quem começou no início dos anos 2000 não teve o mesmo volume de investimento para sustentar o trabalho”.
Em 2003, saiu da banda para experimentar projetos solo. Fundou então o Tabuleiro de Mídia, com a linguagem do soundsystem, “numa época em que ninguém fazia”, e depois o Casarão Santa Luzia, no Comércio, onde produziu os primeiros shows de Mombojó e BNegão na cidade.
Os caminhos recentes em Salvador se abriram para o Auss & Auss no Festival Zona Mundi, realizado pelo músico e produtor Vince Athayde, com o qual Nikima mantém parceria criativa há mais de duas décadas. Vince, inclusive, assumiu o posto de vocalista com a sua saída do Lampirônicos.
“Nikima sempre planeja tudo muito bem antes de qualquer coisa. Quando entrou no Lampirônicos, foi um divisor de água. Ele estudou administração e tem uma mania de organização imensa. Organizou a vida da banda nas questões executivas”, relata Vince. Até a apresentação no Zona Mundi, Nikima estava há 12 anos sem fazer show em Salvador – exceto participações com Ramiro Mussotto (1963-2009). “O último tinha sido com o Scambo, em 2006”, lembra.
Os shows de Auss & Auss vão circular pelo Brasil, mas o repertório varia a cada apresentação. Como sublinha o músico, “as músicas também integram a narrativa. No Zona Mundi, foi a greve dos neurogeradores da Auss & Auss”.
Fonte: www.atarde.uol.com.br