
O olhar sobre a escravidão adquiriu notoriedade nos últimos anos a partir dos ataques à figura de escravistas que, como já se analisou longamente, não podem ser julgados sob a ética e as normas do presente. Que o tráfico de escravos foi um capítulo aterrador, nefasto e ainda não superado é uma questão sempre digna de revisitar, embora partindo desse princípio de extemporaneidade que o situe em sua perspectiva histórica.
O que exige um olhar muito exigente do presente é a herança viva da escravidão que perdura entre nós. Muito mais extensa do que se costuma considerar, e com tentáculos enormes em todos os contextos.
A Organização das Nações Unidas (ONU) denuncia que para cada mil pessoas no mundo, existem 5,4 vítimas da escravidão moderna. De acordo com as Nações Unidas, cerca de 25% das vítimas deste tipo de abuso são crianças.
A escravidão não é apenas uma relíquia histórica. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de 40 milhões de pessoas em todo o mundo ainda são suas vítimas.
Embora a escravidão moderna não seja definida em lei, ela é usada como um termo que abrange práticas como trabalho forçado, servidão por dívida e tráfico de seres humanos. Essencialmente, refere-se a situações de exploração que uma pessoa não pode recusar ou deixar devido a ameaças, violência, coerção, engano e abuso de poder.
De acordo com a agência da ONU, mais de 150 milhões de crianças estão sujeitas ao trabalho infantil, representando quase uma em cada dez crianças em todo o mundo.
Dos 24,9 milhões de pessoas em situação de trabalho forçado, 16 milhões são exploradas no setor privado, como trabalho doméstico, construção ou agricultura.
A exploração sexual forçada afeta 4,8 milhões de pessoas e outros 4 milhões enfrentam trabalho forçado imposto por autoridades estatais.
Mulheres e meninas são desproporcionalmente afetadas, representando 99% das vítimas na indústria comercial do sexo e 58% em outros setores.
No Brasil, escravidão no trabalho doméstico é herança colonial
No Brasil, desde a década de 1990, quando os grupos móveis de fiscalização foram criados, o chamado trabalho análogo à escravidão se caracterizou principalmente pelos resgates em áreas rurais, plantações, cultivos diversos, carvoarias. Também era comum encontrar trabalhadores em obras de construção civil e confecções nas cidades. Agora, as operações revelam outra face do flagelo: pessoas resgatadas da escravidão no serviço doméstico. Em casas de família. Às vezes, durante décadas.
Segundo a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e Previdência, em 2021 a fiscalização encontrou 1.937 trabalhadores em situação análoga à escravidão. Destes, 27 foram no serviço doméstico. Parece pouco, mas em 2020 haviam sido três e no anterior, cinco.
Madalena Gordiano, trabalhadora doméstica da família de um professor universitário, por exemplo, prestou serviços durante quatro décadas, “sem remuneração ou férias”, segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT). Ela foi resgatada em novembro de 2020, após denúncia anônima. Foi encontrada na casa em que o professor vivia com a mulher, em Patos de Minas (MG). Tinha 46 anos na época do resgate. Ou seja, passou a vida toda lá dentro.
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Madalena é um símbolo do legado da escravidão que perdura no Brasil, o último país das Américas a aboli-la, após 350 anos de uma exploração que deixou uma herança ainda insuportável. Trata-se de um caso extremo, que está nas mãos dos juízes, mas nos recorda que a exploração de pessoas sem recursos ― especialmente se forem mulheres ― e sem o poder conferido pela raça branca corrói nosso universo.
No Brasil, os negros e mestiços, herdeiros dos africanos, constituem 56% da população, mas sua expectativa de vida, sua renda, sua formação e sua segurança são sensivelmente menores que a da população branca. Cerca de 75% das vítimas de homicídios são negros ou mestiços. Nos últimos 25 anos, foram resgatadas no Brasil 55.000 pessoas sob condição análoga à escravidão, uma tarefa ainda mais complicada no caso das domésticas.
A desigualdade gerada pelo escravismo e que perdura atualmente é parte dos debates abertos no continente americano, dos protestos do Black Lives Matter nos Estados Unidos à mencionada ofensiva contra as estátuas escravistas. Mas a fenomenologia do abuso contra direitos básicos, com sabor a escravidão do século XXI, é plural e em muitos casos não tem a ver com um componente racista: inclui de crianças militarizadas à exploração sexual e trabalhos forçados de diversos tipos. A linha de avanço que une o Renascimento, o Iluminismo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e outras conquistas mais recentes ainda tem um longo caminho pela frente, inclusive nos países mais avançados.
Isolamento e agressões
Recentemente, uma trabalhadora doméstica de 57 anos foi resgatada após 39 anos em situação análoga à escravidão, em uma residência de Campina Grande (PB). “Natural do município de Cuité, região do Curimataú, a paraibana era submetida a jornadas exaustivas, sob pressão psicológica e em ambiente insalubre e degradante, onde cuidava sozinha de quase 100 cães”, relata o MPT.
Já neste ano, uma operação em Campo Bom (RS) resgatou uma mulher de 55 anos, que trabalhava como doméstica há mais de 40. “A trabalhadora não teve o vínculo de emprego reconhecido durante a maior parte desse tempo, não tinha limitação em sua jornada de trabalho diária ou semanal, era impedida de sair da residência sozinha e/ou sem autorização da empregadora, e de conversar ou se relacionar com pessoas estranhas ao núcleo familiar da empregadora. A mulher também era impedida de se relacionar e conviver com membros de sua família. Além disso, sofria agressões físicas e morais.”
No Rio Grande do Norte, os auditores encontraram duas trabalhadoras em situação de escravidão doméstica, em Mossoró e Natal. “Além da exploração irregular do trabalho, ainda observamos, nos dois casos, maus tratos e, no caso de Natal, ameaças, abusos e excesso de poder disciplinar. No caso de Mossoró, houve ainda o assédio sexual, o que torna as condições ainda mais indignas. Psicologicamente eram situações muito degradantes”, diz a procuradora Cecília Santos, do MPT.
“O trabalho doméstico análogo ao de escravo é invisibilizado porque é normalizado”, acrescenta a prouradora. “Infelizmente ainda é muito comum que famílias peguem meninas no início da adolescência para criar, em troca de oferecimento de estudos. Só que essa oportunidade de estudo nunca vem e essas meninas acabam ficando para sempre cuidando daquela família, exercendo atividades de cuidado, todos os dias, sem controle de jornada, sem finais de semana, férias ou recebimento de salário. Isso durante décadas. O que percebemos é a normalização de uma cultura patriarcal que diz que a atividade de cuidado não merece remuneração, o que não é verdade.”
Queriam escravidão para sempre
Diretora da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Maria Isabel Castro Costa também usa essa expressão e fala em “jugo do patriarcado”. “O jugo dos empregadores, conservadores, aqueles que gostariam que a escravidão nunca acabasse. Eles dependem da mão de obra doméstica, mas não valorizam esse trabalho. Por isso, ainda existem casos de trabalho análogo à escravidão na nossa categoria. Não existe fiscalização, a não ser que haja uma denúncia”, afirma.
No livro Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920), a pesquisadora Lorena Féres da Silva Telles aborda esse processo de transição do trabalho escravo para o livre. Ou nem tanto, como mostra esse exemplo: uma trabalhadora que cuidasse de todo o serviço da casa ganhava de 12 mil a 20 mil réis, enquanto o aluguel de um cômodo custava até 15 mil réis. Assim, era praticamente impossível que elas conseguissem morar sozinhas. “Se não moravam com os patrões, era muito provável que morassem com parentes, companheiros, filhas e filhos”, observa a autora. O livro, publicado pela Alameda, é resultado de uma dissertação de mestrado.
Há pouquíssimos anos, as trabalhadoras domésticas conseguiram a aprovação de uma lei, sancionada por Dilma Rousseff (Lei Complementar 150, de 2015), que garantia equivalência de direitos em relação aos demais trabalhadores. Mas o caminho é longo. Segundo o dado mais recente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, de 5,609 milhões de trabalhadores no setor doméstico no país, 4,247 milhões (76%) não têm carteira assinada.
Com informações da ONU, El País e RBA