
O escritor, professor de filosofia e psicanalista Vladimir Safatle publicou artigo no jornal El País com o título Uma revolução molecular dissipada e recebeu críticas do historiador Jones Manoel.
No texto publicado no dia 19 de maio, Safatle aborda a expressão usada no título. Ele atribui a Álvaro Uribe, ex-presidente da Colômbia e líder efetivo da direita linha dura que hoje governa o país, a criação do termo “revolução molecular dissipada”.
“Diante das inéditas manifestações que tomaram as ruas da Colômbia, fazendo o Governo abandonar um projeto de reforma tributária que mais uma vez passava para os mais pobres os custos da pandemia, não lhe ocorreu ideia melhor do que conclamar os seus à luta contra uma ‘revolução molecular dissipada’ que estava a tomar conta do país. No que, há de se reconhecer, Uribe tinha razão. Normalmente, são os políticos de direita que entendem primeiro o que se passa.”
Vladimir Safatle
Manoel critica exclusão do Partido Comunista do Chile
Em resposta, Manoel escreveu para o site Disparada o texto Vladimir Safatle, o ‘espontâneo’ e o ‘descentralizado. O historiador critica que a análise do filósofo exclui o Partido Comunista do Chile, deixa de fora o contexto histórico que deflagrou movimentos de insurreição na América Latina e exalta a “não centralização”.
“Tenho muito respeito pela produção teórica de Vladimir Safatle. Já dividimos vários espaços de debate e é sempre um prazer dialogar com ele. Dito isso, foi mais que incômodo no escrito de Safatle ‘Uma revolução molecular assombra a América Latina’, a exclusão do Partido Comunista do Chile. Safatle fala de uma institucionalização da insurreição como se ele tivesse surgido do nada, exaltando a ‘não centralização’.
Jones Manoel
Levantes populares na América Latina
Em outro trecho do artigo publicado no El País, Safatle escreve sobre o conjunto de levantes populares em curso na América Latina. O filósofo comenta que a força desses movimentos têm origem em articulações inéditas que congregam vários setores sociais na recusa da ordem econômica neoliberal.
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O texto cita que, no Chile, as lutas contra a reforma tributária são lideradas por uma miscelânea identitária, com pessoas trans, desempregadas e feministas que, para ele, são a síntese do que considera a “revolução molecular”.
“[…] significa que estamos diante de insurreições não centralizadas em um linha de comando e que criam situações que podem reverberar, em um só movimento, tanto a luta contra disciplinas naturalizadas na colonização dos corpos e na definição de seus pretensos lugares quanto contra macroestruturas de espoliação do trabalho. São sublevações que operam transversalmente, colocando em questão, de forma não hierárquica, todos os níveis das estruturas de reprodução da vida social.”
Vladimir Safatle
Não falta centralização, pontua Jones Manoel
Manoel rebate dois aspectos dessa análise de Safatle. Para o historiador, a ausência de protagonismo de partidos políticos nesses movimentos latinoamericanos, sobretudo no Chile, não significa, necessariamente, falta de centralização. Ele usa como exemplo a atuação de movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
“O MTST e o MST, por exemplo, são movimentos sociais, não partidos, e tem direção política centralizadas (e vários aspectos do que seria um centralismo-democrático). Redes de coletivos e movimentos também têm níveis variados de centralização e cadeia de comando. Eu não conheço, por exemplo, a forma institucional de organização dos movimentos feministas no Chile. Não sei se existe uma federação, comando unificado de luta ou algo assim. Essa descentralização precisa ser demonstrada.”
Jones Manoel
Em outro trecho do artigo, Safatle comenta o resultado das eleições de uma nova Assembleia Constituinte do Chile no dia 16 de maio. O escritor rememora que o pleito ocorreu após manifestações massivas em outubro de 2019. A onda de protestos tomou conta das ruas chilenas até o governo cessar a violência contra os manifestantes e convocar o processo constitucional.
“[…] o Chile elegeu 155 deputados constituintes, dos quais 65 são independentes, ou seja, não vinculados a estrutura partidária alguma, mas unidos, como os 24 constituintes da Lista del Pueblo, por um “Estado ambiental, igualitário e participativo”; 79 constituintes são mulheres, sendo a única Assembleia Constituinte da história mundial a ter maioria de mulheres; 18 são povos originários, sendo que todos estão presentes (desde os Rapanui da Ilha da Páscoa até os Mapuches). A direita, que ansiava alcançar ao menos um terço para poder barrar as modificações constitucionais, terá apenas 37 deputados.”
Vladimir Safatle
Jones Manoel critica a análise da política chilena feita pelo filósofo que omitiu o papel do Partido Comunista do Chile no pleito.
“O destaque da assembleia constituinte foi a eleição dos ‘independentes’ e o resultado do Partido Comunista. O PC do país, inclusive, apanhou muito quando buscou dar uma forma institucional para a rebeldia, pautando a assembleia constituinte soberana. O que parece totalmente espontâneo no escrito de Safatle, passou por ação organizada, debatida e planejada de organizações – passou também!”
Jones Manoel
Safatle e Manoel divergem sobre Primavera Árabe
Safatle pontua que, na avaliação dele, o século 21 foi inaugurado em dezembro de 2010 na Tunísia. Ele recorda que um vendedor ambulante foi à sede do governo reclamar do confisco do seu carrinho de frutas, foi agredido por um policial e em resposta ateou fogo ao próprio corpo. O gesto incendiou a Tunísia, derrubou o governo de Ben Ali e alastrou uma onda de protestos por vários países árabes no que ficou conhecida como “Primavera Árabe”.
“Começava assim o século 21: com um corpo imolado por não aceitar submeter-se ao poder. Começava assim a Primavera Árabe. Com um ato que dizia: melhor a morte do que a sujeição, com uma conjunção toda particular entre uma ação restrita (reclamar por ter seu carrinho de venda de frutas apreendido) e uma reação agonística (imolar-se) que reverbera por todos os poros do tecido social.”
Vladimir Safatle
Manoel comenta que o uso da expressão “Primavera Árabe” o incomoda porque não diferencia o contexto histórico dos países em que ocorreram os protestos.
“De resto, me incomoda muito a citação a “Primavera Árabe”, ainda em bloco sem diferenciar, por exemplo, o processo da Tunísia com o do Líbia, e a ausência de um balanço disso – a Líbia, o país de maior IDH da África, foi destruído; e a Síria quase virou uma ex-nação. Em suma, é preciso cuidado na hora de ver o “espontâneo” e o “descentralizado” nas lutas políticas.”
Jones Manoel