
A urgência a respeito da conscientização social e a mobilização política em torno dos efeitos da indústria da moda na sociedade e no meio ambiente tem pautado os debates no setor e também fora dele. A potência destrutiva do mundo fashion, que a cada dia tem explorado a mão de obra e os recursos naturais do nosso planeta em nome do lucro, é anteposta à potência criativa do mesmo setor que emprega, inclui e reforça a identidade nacional.
Essa foi a linha do debate desta quinta-feira (22) durante a segunda edição do novo quadro de entrevistas Moda e Política, promovido pelo site Socialismo Criativo, que recebeu a diretora executiva do Fashion Revolution Brasil, Fernanda Simon.
“É preciso levar ao conhecimento de todos os processos, desde a extração da matéria prima, os processos produtivos e também os descartes dessas roupas que vão parar nos aterros sanitários. Poucas pessoas têm a consciência de todo esse ciclo e é preciso que essa informação chegue a todos”
Fernanda Simon
A consciência do processo que envolve a confecção de uma vestimenta é pouco difundida na sociedade. Pouco se pensa sobre a origem de um tecido e a relação da indústria da moda com o meio ambiente.
Por isso, o Fashion Revolution foi criado como um movimento para trazer essa consciência e sensibilização de todos para os impactos do setor. “É preciso trazer informação, unir informação e incentivar uma mobilização de todos nós. Seja como cidadão, seja como profissional, seja como setor privado ou público”, disse.
As entrevistas são conduzidas pela secretária de redação do site Socialismo Criativo, Iara Vidal. A jornalista é pesquisadora independente dos encontros da moda com a política e representa o movimento Fashion Revolution em Brasília. Ela é ativista para que a produção da moda seja justa, ética e consciente. E que preze pelas pessoas e pela natureza acima do lucro.
Mulheres da moda, uni-vos
A ativista destacou que um dos pontos que devem ser amplamente discutidos é a precarização do trabalho de confecção de roupas. “Esse é um trabalho majoritariamente feminino. No mundo, é estimado que 80% da mão de obra da moda são mulheres. Estamos falando de mulheres que costuram as nossas roupas, mulheres que são líderes de famílias e que dependem disso para viver”, pontuou.
Os dados mencionados por Fernanda são corroborados pela Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT) que publicou em 2018 que, dos 9,5 milhões de empregados diretos e indiretos na indústria da moda no Brasil, 75% são de mão de obra feminina, e no mundo 85%, de acordo com a Organização Mundial do Trabalho (OIT).
Debate da moda é feminista
Para Iara Vidal, o debate em torno da moda é feminista e que é preciso que mais mulheres entendam todo o processo pelo qual as roupas são feitas. “Só assim conseguiremos ter o apoio de mais mulheres nesta rede. A gente só defende o que a gente conhece. Por isso, esse debate é fundamental”, disse.
Iara destacou ainda o fato de que a celeridade na produção da moda é movida pelo incentivo ao consumo que traz impactos ambientais irreversíveis. Ela deu ênfase para o protagonismo feminino neste processo e reforçou a necessidade de fortalecer a rede de apoio entre as brasileiras.
O que é o movimento Fashion Revolution?
Fernanda Simon explicou que o grupo de ativistas do Fashion Revolution acredita no poder de transformação positiva da moda, e tem como principais objetivos conscientizar sobre os impactos socioambientais do setor, celebrar as pessoas por trás das roupas, incentivar a transparência e fomentar a sustentabilidade.
O movimento teve início em 2013, na Inglaterra, após a queda de um prédio que ficava em Bangladesh. O edifício se chamava Rana Plaza e ficava em Dakha, capital do país. Lá várias confecções de roupas trabalhavam de forma desorganizada e em condições precárias de segurança. Quando o prédio desabou, vários profissionais do setor, que já estavam engajados na causa de uma moda mais ética, se uniram para que acidentes como este não voltassem a acontecer.
“Bangladesh é o segundo maior produtor de roupas do mundo. Se você for ao shopping e olhar algumas etiquetas você vai perceber que muitas roupas comercializadas aqui são de lá. Esse acidente representa não só uma realidade vivida nos países asiáticos, mas também aqui no Brasil”, disse Fernanda.
O Fashion Revolution é o maior movimento ativista da atualidade e atua em cerca de 100 países. No Brasil, o movimento se consolidou em 2014 e a pouco mais de três anos se tornou uma Organização Não governamental (ONG) com o nome Instituto Fashion Revolution Brasil. São 70 representante do movimento no país.
Quem fez a minhas roupas?
Iara Vidal explicou que a campanha #QuemFezMinhasRoupas surgiu para aumentar a conscientização sobre o verdadeiro custo da moda. E seu impacto no mundo em todas as fases do processo de produção e consumo.
“A pergunta Quem fez as minhas roupas? nos leva a uma jornada que tem vários aspectos. A campanha ganhou corpo incentivando as pessoas a olharem as etiquetas e terem conhecimento do material que é feito e de onde elas vêm. Existem pessoas por trás do que usamos e isso precisa ser levado em conta”
Iara Vidal
O movimento Fashion leva em consideração as tradições e saberes locais, além do respeito ao ciclo da terra que produz as fibras com que são feitas as nossas roupas. Em 2021, o movimento Fashion Revolution trabalha sobre três eixos: direitos, relacionamentos e revolução.
“Quando falamos de direitos, a gente fala inclusive dos direitos da terra. Já relacionamento diz sobre a maneira com que a gente se relaciona com os outros, com as roupas e com a natureza. E, por fim, quando falamos de revolução a gente fala sobre novas formas de produzir, de usar, de comprar e de entender o processo”, ressaltou a diretora Fernanda Simon.
Moda e política
Os mais de 70 representantes brasileiros do Fashion Revolution englobam diversas áreas. Fernanda explica que há pessoas que se identificam mais com o lado da confecção, de oficinas, que têm um viés mais acadêmico e outros mais ativistas. Como exemplo, ela cita a própria Iara Vidal, jornalista e ativista do movimento, que compreende também a necessidade de políticas públicas voltadas para o setor da moda como um todo.
Por isso, Iara defende que é preciso trabalhar a política, porque é através dela que acontece o transformar coletivo.
“É preciso sensibilizar a pessoa em quem você votou a ir ao seu município, a ir até Brasília. Precisamos falar sobre o trabalho análogo a escravidão no nosso país e é só por meio de políticas públicas que a gente pode resolver isso”, reforçou.
Moda sem veneno
Em um momento crítico da pandemia, com mais de 500 mil famílias em luto, diariamente, a bancada ruralista vê oportunidade de aprovar o projeto de lei (PL 6299/2002), conhecido como PL do Veneno e que impacta diretamente a vida da população.
Em abril deste ano, As organizações Fashion Revolution Brasil, Modefica e Rio Ethical Fashion lançaram a campanha #ModaSemVeneno, contra a aprovação do PL do Veneno. O movimento tem apoio de organizações da indústria têxtil e de confecção e de entidades sindicais, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Ramo Vestuário (CNTRV) da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e ações como a Marcha das Margaridas, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
O algodão é a principal fibra natural usada na moda e a quarta cultura que mais consome agrotóxicos, sendo responsável por aproximadamente 10% do volume total de pesticidas utilizado no país. Entre os agrotóxicos mais utilizados está o glifosato, que pode causar diversos efeitos na saúde, como aborto espontâneo e câncer. A campanha #ModaSemVeneno foi lançada durante a Semana Fashion Revolution 2021, evento promovido todos os anos pelo Fashion Revolution.
“Existe uma falsa impressão de que o algodão é um produto natural e que é amigo do meio ambiente, mas não é bem assim. Ele pode ser devastador para o nosso meio ambiente”
Fernanda Simon
Cultura do veneno
O Brasil é também um grande exportador de celulose solúvel, matéria-prima para a produção de viscose. As culturas de eucalipto e algodão utilizam de 7 a 10 tipos dos agrotóxicos mais vendidos no Brasil, respectivamente.
Entre os agrotóxicos mais utilizados está o acefato, na 4º posição, com alto potencial carcinogênico e o Imidacloprido, na 7ª posição, considerado um dos mais fatais para abelhas, polinizadoras importantes, o que gera preocupação tanto do ponto de vista econômico, quanto socioambiental.
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Entre os riscos para o setor da moda estão: (i) a desinformação do consumidor; (ii) riscos reais à saúde de trabalhadoras e trabalhadores, incluindo questões de saúde reprodutiva das mulheres; (iii) ameaça à exportação nacional diante de novos posicionamentos dos países em relação ao uso intensivo de agrotóxicos.
O texto do PL do Veneno foi proposto pela frente parlamentar formada por empresários do agronegócio e elaborado de forma unilateral, sem qualquer diálogo com a sociedade. Os principais argumentos em favor da matéria já foram rebatidos por uma série de especialistas.
Transparência na moda
Fernanda Simon falou sobre o índice de transparência na moda, que é uma ferramenta criada pelo movimento para dar visibilidade aos dados divulgados pelas grandes marcas. Ela destaca que uma das fragilidades do mundo fashion é a falta de rastreabilidade do setor.
“Em busca de trazer uma ferramenta para as marcas avaliarem seu desempenho e índice de transparência, foi construída essa ferramenta com o objetivo de mostrar quais dados as marcas estão divulgando publicamente. Cerca de 250 das maiores marcas globais já estão lá e o Brasil foi escolhido para realizar uma edição localizada. Esse ano a gente vai lançar a quarta edição com as marcas brasileiras”, adiantou.
Iara Vidal avalia que o principal desafio dos ativistas é promover a transparência desses processos para que as pessoas entendam. “Não é só dizer não use isso, não faça aquilo. Precisamos dizer o por quê de tudo. As coisas são muito mais complexas, pois envolvem pessoas, desejos, acesso à democratização e várias questões. E um dos esforços do Fashion Revolution é trazer informação para as pessoas”, destacou.
Última cadeia produtiva completa da moda no ocidente
Fernanda explicou ainda que aqui no Brasil nós temos desde o cultivo das fibras até a produção final das peças. “A gente produz a nossa matéria prima e nossa cadeia industrial é forte. A produção têxtil no Brasil é uma potência e a gente tem indústria da moda criativa. Por mais que tenhamos uma produção que vem de fora, temos potencial para produzir apenas no nosso país”, afirmou.
Segundo a diretora do movimento, quando se fala em sustentabilidade no mundo da moda é preciso pensar de forma global, mas agir de forma local. Ela ressalta ainda a necessidade abrir espaço para a história da moda brasileira, pois nas universidades e cursos o foco é na história da moda mundial.
“Pouco se sabe sobre a história das nossas fibras, das origens dos nossos tecidos e dos costumes envolvendo a moda brasileira. Nossa cultura é muito rica e deve ser valorizada”
Fernanda Simon
Covid-19 e a moda
A pandemia da covid-19 impactou também o mundo da moda. O setor foi um dos mais atingidos com milhares de trabalhadores sem empregos e o fechamento de muitas fábricas pelo mundo.
“Está sendo muito drástico. Temos contato com organizações e os relatos de pessoas que foram demitidas, pedidos cancelados e muita gente passando necessidades. É preciso que as grandes marcas sejam responsáveis neste momento”, cobrou Fernanda.
De acordo com ela, já existem pesquisas que revelam uma mudança no comportamento do consumidor, que passou a ter mais interesse por compras objetivas, que sejam úteis e mais responsáveis com a sustentabilidade.