
Os números oficiais da inflação não refletem o que é vivido na pele pelos mais pobres. Enquanto a inflação oficial ficou em pouco mais de 10% em um ano, os reajustes dos alimentos foram o dobro e registram aumento de 20%. Se for considerada a alta nos alimentos desde o início da pandemia, o percentual chega a praticamente 40%.
Somado a isso, os mais pobres são também os primeiros a sentirem a disparada no desemprego. De 2014 a 2019, a desocupação nessa parcela da população quase dobrou (para 21%); e voltou a subir mais 8,5 pontos percentuais na pandemia. As informações são da Folha de S.Paulo.
O resultado da combinação de alimentos e desemprego em alta representa a queda aguda do poder aquisitivo dos mais pobres, com o aumento da fome e da miséria no Brasil.
E, para que os preços caiam ou ao menos se estabilizem, atividade econômica e emprego devem sofrer ainda mais, de acordo com especialistas.
A expectativa é que repitam o roteiro a partir de 2015, quando a inflação oficial cedeu de 10,67% para, em 2019, chegar a 4,31%. Tempo muito longo de espera para quem está sem emprego ou enfrentando dificuldades.
Só que diferente daquele cenário, o país está mais pobre e fragilizado do que em 2015. Desemprego altíssimo e a volta da fome pioram ainda mais o cenário atual.
Cenário ainda pior
Em 2014, antes do início daquela forte recessão, a taxa de desemprego média calculada pelo IBGE havia sido de 4,8%, o menor nível da série. Em agosto último, era quase o triplo: 13,2%.
Nos últimos anos, o aumento da desocupação dilapidou a renda do trabalho. Tomando-se um período mais longo, de dez anos até 2021, o rendimento da metade mais pobre no país retrocedeu 26,2%, segundo dados da FGV Social.
Só nos últimos 12 meses, período em que os alimentos dispararam 20%, a renda real familiar per capita do trabalho na metade mais pobre despencou 18%, de R$ 210 mensais para R$ 172.
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Embora o valor não inclua outras rendas, como o Bolsa Família ou o auxílio emergencial, trata-se do menor patamar para a renda familiar do trabalho em mais de uma década —e num cenário de aceleração inflacionária.
Aumento dos juros terá impacto limitado na inflação
Para Andre Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), mesmo o aumento do juro pode ter impacto limitado na inflação caso preços dolarizados, como os de combustíveis, continuem subindo.
“A gasolina pode até ser considerada bem de ‘luxo’ para os mais pobres. Mas o diesel [+35% de alta neste ano] é perverso, pois contamina tudo, de hortaliças ao transporte público. Com o dólar em alta, a tendência também é que mais alimentos sejam exportados, pressionando preços aqui”, disse à Folha.
Segundo Guilherme Moreira, coordenador do IPC da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), com a disparada nos preços de alguns produtos consumidos pela baixa renda (como o gás em botijão), os índices de preços podem inclusive não estar refletindo com qualidade o comportamento da inflação.
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“Alguns produtos que fazem parte da coleta de preços simplesmente deixaram de ser consumidos”, afirma. Itens que têm menos peso no índice podem estar sendo mais consumidos agora —e vice-versa.
Situação mais difícil para os mais pobres
Moreira destaca que o comportamento dos preços dos alimentos tem sido extremamente negativo para os mais pobres.
“Existe a falsa impressão de que os mais ricos sofrem tanto quanto os demais. Mas, para uma família muito pobre, 20% a mais no preço da comida significa passar fome”
Guilherme Moreira
Segundo estratificação do Datafolha, 57% das famílias brasileiras atravessam o mês com menos de R$ 2.200. Mas a renda é muito menor para os realmente pobres.
De acordo com a FGV Social, 27,4 milhões de brasileiros (13% da população; quase uma Venezuela) vivem hoje com menos de R$ 261 ao mês —a maior taxa de miseráveis em uma década.
A dinâmica do mercado de trabalho, extremamente negativa para a baixa renda nos anos recentes, também foi bem menos danosa para os mais ricos.
Enquanto a taxa de desocupação da metade mais pobre mais que dobrou desde 2014, o desemprego entre os 10% mais ricos passou de 2% para cerca de 3% no período, segundo a FGV Social com base nas PnadC (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua) anual e trimestral.
Segundo a pesquisadora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Maria Andréia Parente Lameiras, o atual processo de aumento da taxa básica de juro pelo Banco Central tende a ser “muito perverso” para os mais pobres.
“Automaticamente, estaremos prejudicando o mercado de trabalho e o crescimento. E os mais pobres e menos qualificados acabarão no fim da fila de uma eventual recuperação”
Maria Andréia Parente Lameiras – Ipea
Segundo ela, ao contrário das faixas mais ricas, que podem ter a opção de adiar a compra de alguns bens, os mais pobres não têm como deixar de comer. É nessa área, por causa da necessidade diária de consumo, que os repasses de preços podem continuar com mais força.
A decisão, há alguns dias, de burlar essa âncora fiscal no ano eleitoral de 2022 provocou o aumento do dólar, com impacto na inflação e nos juros futuros.
A mudança no teto, que inicialmente visava aumentar os valores e a cobertura do chamado Auxílio Brasil, dirigido aos mais pobres, pode agora inflar emendas parlamentares e outros gastos acima da correção inflacionária.
O resultado dessa perspectiva tem sido o rebaixamento das projeções de crescimento para os próximos meses —num quadro já muito difícil para os mais pobres.