
O negacionismo do agora ex-presidente Donald Trump colaborou decididamente para que os Estados Unidos chegassem à topo do ranking de países com o maior número de mortos pela Covid-19 e influenciou políticas errôneas adotadas por outros líderes mundiais no combate à pandemia, como a do próprio presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (sem partido). Estas são as conclusões das análises feitas pela Comissão sobre Políticas Públicas e Saúde na Era Trump, conduzida pela revista The Lancet, uma das mais importantes publicações científicas do mundo.
Em um relatório divulgado nesta quinta-feira (11), o colegiado aponta que cerca de 40% das mais de 470 mil mortes atribuídas ao coronavírus nos EUA poderiam ter sido evitadas se a taxa de mortalidade no país se igualasse à média das outras seis nações, como Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão e Reino Unido, que formam o grupo das principais economias do mundo.
“O presidente [Joe] Biden deve enfrentar a pandemia de Covid-19 e suas consequências econômicas, além do legado corrosivo de Trump”, diz um editorial da Lancet que acompanha o relatório. O texto afirma que a era Trump foi marcada por retrocessos que compõem “uma lista assustadora, mas crucial” em questões como cobertura universal de saúde, negação da ciência, racismo e desigualdade de renda.
“Em vez de galvanizar a população dos EUA para lutar contra a pandemia, o presidente Trump rejeitou publicamente sua ameaça (apesar de reconhecê-la em particular), desencorajou a ação à medida que a infecção se espalhou e evitou a cooperação internacional”, afirmam os autores.
Mau exemplo ao mundo
Mesmo em âmbito global, o relatório dos especialistas aponta que Trump teve um papel desestabilizador ao retirar o financiamento da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em outras áreas, como na política ambiental, sua falta de compromisso com o multilateralismo também deu maus exemplos ao mundo.
De acordo com os autores, Jair Bolsonaro vem “adotando políticas que aceleram a destruição da Floresta Amazônica e irão acelerar as mudanças climáticas”.
“Infelizmente, as políticas de Trump não são uma aberração isolada dos EUA”, conclui o relatório. “As agendas autoritárias estão se espalhando em todo o mundo, à medida que os políticos mobilizam pessoas inseguras com suas perspectivas de declínio para ir contra aqueles que estão abaixo delas em hierarquias raciais, religiosas ou sociais.”
Além de Bolsonaro, são incluídos na categoria de influenciáveis os presidentes da Turquia e das Filipinas e os primeiros-ministros da Índia e da Hungria.
470 mil mortos
O número de óbitos por Covid-19 entre os americanos desde o início da pandemia também se assemelha à cifra que os especialistas chamam de uma “epidemia silenciosa de vidas encurtadas” – outras 461 mil mortes por ano consideradas desnecessárias, resultado de décadas de falhas políticas “dolorosamente expostas e agravadas” pela administração Trump.
Leia também: Liderado por negacionista, México ultrapassa a Índia em número de mortes pela Covid-19
Formado em abril de 2017, pouco depois de Trump assumir a Presidência dos EUA, o Comitê fez uma análise dos quatro anos em que o republicano ocupou a Casa Branca e elencou os principais erros do último líder americano. A comissão é formada por um grupo de 33 especialistas americanos, britânicos e canadenses com ampla experiência em áreas que vão da medicina clínica e da epidemiologia ao direito, economia e política.
O relatório ainda aponta situações em que o republicano alegou que a Covid-19 era uma farsa, recusou-se a cumprir medidas baseadas em evidências, promoveu terapias sem comprovação médica (como o uso de hidroxicloroquina) e deu sugestões perigosas à população (caso da injeção de desinfetante “para matar o vírus”).
Desdém e desrespeito
Além disso, cortes orçamentários, alguns anteriores ao governo Trump, extinguiram cargos de cerca de 50 mil profissionais de saúde entre 2008 e 2016, um contingente de trabalhadores da linha de frente que poderia proporcionar aos EUA um cenário completamente diferente na resposta ao coronavírus.
Os efeitos dessa ideologia que, segundo os autores, erodiu programas sociais, ajudaram a viabilizar a eleição de Trump em 2016. O relatório afirma que, durante sua campanha presidencial, o republicano explorou a raiva e a animosidade da população branca para desviar a atenção das políticas que geram o acúmulo de poder e riquezas entre os bilionários.
“Seus apelos racistas, anti-imigrantes e nacionalistas encontraram ressonância em algumas comunidades brancas de renda média e baixa que buscavam bodes expiatórios para suas perspectivas de vida em declínio, mesmo mantendo alguns privilégios negados às pessoas não brancas”, diz a comissão.
Para os especialistas, a abordagem de Trump para responder à pandemia foi desdenhosa e remeteu a negligências históricas, como a omissão dos EUA em criar uma política de quarentenas e vacinas para mitigar surtos de varíola entre negros emancipados após a Guerra Civil americana (1861-1865).
Xenofobia e caos
O ex-presidente também é acusado de explorar a pandemia para tornar mais rigorosa sua política anti-imigração, usando a justificativa de proteger a saúde pública para fechar ainda mais o país, apesar de os EUA estarem no topo da lista de nações com mais casos e óbitos pela Covid-19.
O discurso xenofóbico de Trump, segundo o relatório, gerou medo e confusão na população de imigrantes, de modo que esses grupos tendem a evitar os serviços de saúde mesmo quanto têm acesso a eles. Na prática, isso dificulta os esforços de identificação e rastreamento de novas infecções pelo coronavírus.
“A resposta desastrosa e malfeita à pandemia deixou claro como as desigualdades raciais existentes, e de longa data, simplesmente não foram abordadas”, afirma Mary Bassett, membro da comissão e pesquisadora da Universidade Harvard. “É hora de parar de dizer que essas lacunas evitáveis não podem ser eliminadas.”
Com informações da Folha de S.Paulo