
A única fábrica brasileira de semicondutores, que serve para produzir chips, está sendo fechada pelo governo federal. A justificativa é de que está em curso a redução do tamanho da máquina pública. Com a crise global dos semicondutores a demanda mundial tem crescido fortemente.
A liquidação do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), estatal federal criada em 2008 e instalada em Porto Alegre (RS), vai significar a dispensa de 180 funcionários de alta qualificação técnica, muitos dos quais só vão conseguir mercado no exterior, num evento que entidades científicas consideram um “capítulo dramático” do apagão que atinge o setor tecnológico no Brasil.
Importância dos semicondutores
Os semicondutores são fundamentais em computadores em geral e estão presentes em itens de consumo e na infraestrutura de comunicações. O Ceitec produziu chips para colocar em animais e rastreá-los e para passagem em pedágios. Desde que começou a funcionar, o centro forneceu um terço dos insumos consumidos nesse setor no Brasil.
Além disso, o Ceitec atuou como celeiro brasileiro de desenvolvimento desse tipo de tecnologia, com os profissionais de alto nível formados em instituições públicas.
Motivo infundado
O Ceitec está em liquidação por decisão do conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) como o argumento de que não dá lucro e sequer se sustenta. Com dados oficiais, a empresa recebeu aproximadamente R$ 600 milhões entre 2010 e 2018 e, mesmo com a criação de produtos como o “chip do boi”, que automatiza o rastreamento do rebanho, acumulou prejuízo de R$ 160 milhões durante o período de funcionamento.
As projeções avaliam que a empresa caminha para o equilíbrio econômico, que seria atingido entre 2025, no cenário mais otimista, e 2029, no mais pessimista. Mesmo assim, a decisão foi pela extinção (opções para o não fechamento seriam a manutenção, uma parceria com a iniciativa privada ou a privatização).
Dispensa de funcionários
A empresa já está sendo administrada pelo liquidante, o oficial da reserva da Marinha Abílio Eustáquio de Andrade Neto, que tem no currículo a liquidação de outra estatal, a Casemg, que administrava silos. Ele assumiu em fevereiro deste ano, e tem 12 meses para terminar o serviço.
O militar, que já dispensou 34 funcionários em maio, tem uma lista de mais 40 demissões para as próximas semanas. A associação que representa os funcionários tenta reverter os desligamentos na Justiça do Trabalho e evitar a liquidação com ação no Tribunal de Contas da União (TCU). Até agora, porém, sem sucesso.
Prejuízos com fechamento da fábrica de semicondutores
O professor Tiago Balen, que coordena o programa de pós-graduação em microeletrônica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atuou no Ceitec como engenheiro projetista e diretor, considera o fechamento da empresa “muito prejudicial para a tecnologia nacional” e resultado de uma visão simplista do governo.
”É a única fábrica de semicondutores do Hemisfério Sul do planeta, com instalações de ponta. A detenção da tecnologia de fabricação de circuitos integrados é crucial no processo de desenvolvimento científico e tecnológico de qualquer país.”
Tiago Balen
“Embora a tecnologia que a fábrica poderia realizar não seja a mais moderna, como a dos processadores atuais, é uma tecnologia capaz de ser utilizada em muitos circuitos integrados de aplicação específica, e com diversas aplicações industriais”, complementa Balen.
O professor da UFRGS é testemunha do prejuízo para o país por não dar aos formados na área um mercado para trabalhar e desenvolver tecnologia nacional. “Muitos de nossos grupos, altamente qualificados, trabalharam na empresa. Hoje, o que estamos vendo é que esses profissionais estão na sua grande maioria a caminho do exterior”, relata.
“Apesar de a empresa ser realmente deficitária, o papel dela ia muito além da geração de lucro. O eventual impacto positivo nas contas do governo será insignificante com a extinção da empresa, especialmente se comparado com os enormes prejuízos para a área de ciência, tecnologia e inovação do país”, conclui Tiago Balen.
Protestos contra o fim do Ceitec
Várias entidades que representam profissionais que trabalham com tecnologia têm protestado contra o fim do Ceitec.
A Federação Nacional dos Engenheiros, por exemplo, enviou carta ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em que argumenta que o Ceitec “é fundamental para o desenvolvimento da indústria eletroeletrônica do Brasil”. A companhia completa na carta que “genuinamente nacional promove o aumento da independência de empresas estrangeiras”.
“A solução de extinção é fruto de uma análise imediatista e simplista. Ela afeta não só a empresa, mas condena todo o país a continuar no atraso e na dependência de tecnologia importada, ficando de fora de um mercado de alto valor agregado, com os óbvios reflexos negativos, em longo prazo, para a economia e a soberania nacionais”, escrevem os engenheiros.
A Sociedade Brasileira de Computação (SBC), por meio de seu Conselho, divulgou nota em que considera a extinção da empresa “contrária ao interesse nacional de deter know-how próprio em microeletrônica e semicondutores. Essa medida não estabelece parcerias de fato, e irreversivelmente desperdiça a propriedade intelectual, os ativos e investimentos já realizados na única fábrica de difusão de circuitos integrados no Brasil e no centro de projetos da estatal”.
De semicondutores a vacinas
O professor de microeletrônica da UFRGS Sergio Bampi, explica a importância da existência de ao menos um polo que pesquise e produza esse tipo de tecnologia no Brasil, hoje o país tem hoje vacinas contra a Covid-19 porque investiu em linhas de produção de imunizantes no Instituto Butantan e na Fundação Oswaldo Cruz por décadas.
“Investimento público na parte científica, nos recursos humanos, na linha de produção. Um investimento estratégico que dá ao país, sobretudo neste contexto de pandemia, condições de responder”, explica o docente, que também atuou na Ceitec, mas antes da federalização, em 2008, na época em que ela era ligada à universidade e a outros entes públicos e privados.
Bampi afirma que, num mercado mundial de US$ 460 bilhões por ano, a importância da Ceitec não pode ser medida apenas pelo fator econômico. “Como produtor, a empresa tem uma expressão muito pequena, mas, como um laboratório, tem potencial muito grande para beneficiar o ecossistema de inovação. Nós temos que fazer inovação no Brasil”, frisa.
“Isso está dentro do contexto de desmonte da capacidade tecnológica e científica que existe dentro do Brasil. E que foi desmontado pela equipe da Economia, porque no ano que vem o idiota do Paulo Guedes precisa mostrar uma bandeira para a sociedade: eu acabei com tantas estatais. Ele vê o Ceitec como mais um número.”
Sergio Bampi
O docente critica ainda o discurso de Bolsonaro. “Quer chegar na eleição com papo de que tirou empresas das costas do Estado, das costas dos empresários, abrindo espaço para a iniciativa privada. Mas o empresariado brasileiro não quer investir em um mercado como esse, que é de risco, o empresariado quer se beneficiar da segurança que o Estado dá enquanto critica o tamanho dele. Sem o Ceitec, vamos ficar sem investimento público e sem investimento privado num setor fundamental”, conclui.
Ceitec e o mercado
A empresa que está sendo extinta pelo governo é uma das oito no mundo com capacidade e certificação para fabricar o chip que vem nos passaportes, mas que a Casa da Moeda não compra, com prioridade aos fornecedores estrangeiros.
A estatal também é a única empresa da América Latina que cobre toda a escala de produção de chips com silício, e já produziu mais de 100 milhões de unidades. Além de fornecer para o mercado, a empresa tem um setor de pesquisa e havia desenvolvido equipamento capaz de testar para a Covid-19.
Foi a primeira empresa que teve chips registrados como desenvolvidos no país e tinha em seu corpo técnico 11% dos funcionários com doutorado ou pós-doutorado e 31% com mestrado.
O Ceitec é ainda fornecedora de outras empresas do setor tecnológico, que agora terão de buscar os produtos no mercado internacional.
Com informações do Metrópoles