
A Revolução Brasileira é a coluna quinzenal e exclusiva para o site Socialismo Criativo assinada por Jones Manoel. Historiador, professor, educador popular, youtuber e podcaster, o colunista aborda os caminhos revolucionários a partir do ponto de vista da juventude marxista brasileira.
Boa leitura!
Formação política da vanguarda revolucionária
Escrever sobre formação política não é uma tarefa fácil. Circulam hoje muitas noções de formação política idealistas e centradas em conhecimento livresco. Realizar de tempos em tempos um encontro com uma palestra sobre um tema ou encontros para assimilar a linha política da organização não é, em si, formação política. Momentos como esse são importantes, mas apenas uma parte de um todo muito maior normalmente ignorado.
A primeira coisa a ser dita é que consideramos por formação política o desenvolvimento contínuo de habilidades teóricas, prático-organizativas, emocionais e físicas, unindo teoria e prática numa dinâmica de retroalimentação. Vamos procurar debater cada um desses elementos e a partir dessa reflexão e explicitar aspectos importantes do que consideramos uma boa formação política para criar os quadros da Revolução Brasileira.
Começando sobre o aspecto teórico-político da formação política. O comunista Bertolt Brecht disse, certa vez, que os nossos tempos são ruins, afinal temos que dizer o óbvio. É algo evidente que militantes revolucionários devem ter um profundo conhecimento da realidade nacional na qual estão inseridos e a partir da qual pretendem fazer a revolução para construir uma sociedade socialista.
Essa afirmação óbvia, contudo, muitas vezes escapa ao nosso cotidiano no processo de estudo e formação política. Todos os grandes revolucionários da história, especialmente os que tiveram êxito e conseguiram dirigir as revoluções em seus países, eram profundamente nacionais em um sentido muito preciso: dominavam, uns mais outros menos, vastos campos do conhecimento e do saber “universal” e tinham um acúmulo gigantesco sobre sua realidade nacional, sendo esse saber “universal” subsidiário para entender a sua realidade – o universal se realiza no particular.
É certo que a revolução socialista necessariamente tem uma pulsão internacionalista e o comunismo só será alcançado em um plano mundial. Todavia, as tarefas concretas da conquista do poder e da edificação do socialismo, sem desconsiderar a dinâmica de acumulação capitalista e a geopolítica mundial, têm uma dimensão nacional.
A melhor forma de ser internacionalista na prática é derrotar a “sua” burguesia. Essa perspectiva não significa menosprezar a história mundial do movimento operário, os debates sobre economia política internacional, as polêmicas sobre estratégia na história das esquerdas e muito menos o internacionalismo proletário.
A organização revolucionária deve criar uma dinâmica de socializar ao máximo todos os conhecimentos possíveis e tornar debates que normalmente ficam a cargo dos “especialistas” – como geopolítica – algo popular e que circule no conjunto da militância. Ao mesmo tempo e sem idealismo, o tempo livre restrito de que dispõe a classe trabalhadora impõe prioridades de estudo, formação, leitura, conhecimentos. E a nossa prioridade deve ser a realidade nacional e continental, considerando a importância vital da integração latino-americana (e prioridade não é exclusividade).
Mas falar de prioridade da realidade nacional, o solo histórico-concreto onde faremos a revolução, é algo fácil de enunciar em princípios, mas difícil de realizar na prática. Temos dificuldades objetivas para materializar essa orientação de formação. Vejamos alguns exemplos.
Imperialismo domina o capitalismo dependente
Não estamos na Europa, EUA ou Japão. O Brasil é um país de capitalismo dependente que teve como antecedente histórico mais de 300 anos de escravismo colonial. Ser um capitalismo dependente significa, dentre outras coisas, que em nosso país o padrão de acumulação de capital, dominação política e reprodução ideológica e simbólica é dominado pelo imperialismo.
Uma das consequências dessa realidade da periferia do capitalismo é a onipresença do colonialismo cultural. O colonialismo cultural é a ideologia – materializada em aparelhos ideológicos e no sistema de dominação política – de legitimação e reprodução da dependência e do subdesenvolvimento que visa ocultar do debate político e do conhecimento das classes populares essa realidade periférica e seus determinantes, impondo programas de pesquisas, conceitos, categorias, noções e tendências na “opinião pública” estranhas à nossa realidade, pois gestados nos países centrais do capitalismo – ou com inspiração neles –, com o objetivo de garantir os interesses do imperialismo e da burguesia interna. Em suma, é uma forma de desistoricizar, legitimar e naturalizar o capitalismo dependente afirmando a hegemonia do bloco no poder.
As consequências desse colonialismo cultural são amplas. Desde o cinema, passando pela música até a produção do conhecimento nas universidades e centros de pesquisas. Por exemplo, todo cidadão brasileiro sabe o nome de várias cidades, presidentes, bairros, personalidades ou eventos históricos importantes da história do EUA. Concretamente, o folclore dos EUA é mais presente em nosso cotidiano que o brasileiro – pense, por exemplo, que você sabe quem é, ao menos vagamente, Al Capone e Bonnie & Clyde, mesmo não lembrando quando aprendeu isso.
Na produção acadêmica e no ensino, a prática é lermos muito mais autores estrangeiros da moda que brasileiros e latino-americanos. Na minha graduação em História na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por exemplo, tive mais acesso à Escola de Frankfurt, Hannah Arendt e Michel Foucault do que a Vânia Bambirra, Florestan Fernandes e Nelson Werneck Sodré. Fazendo uma rememoração do que me foi ensinado na graduação, fui muito mais preparado para falar da França do que do Brasil.
A maioria dos autores, categorias e problemas de pesquisa na universidade periférica foram formulados ignorando a realidade dos países dependentes. Um exemplo básico é suficiente para demonstrar isso. Michel Foucault e suas interessantes pesquisas sobre sistema carcerário – especialmente na sua aclamada obra Vigiar e punir: nascimento da prisão – tratam de um poder cada vez mais capilar, organizado para esquadrinhar todos os meandros da vida social e que visa, nos mínimos detalhes, disciplinar o corpo do sujeito em uma série de instituições de controle.
Se essa análise foucaultiana correspondia à realidade europeia – debate que não queremos fazer –, é algo evidente que não se aplica à realidade da América Latina. Aqui nunca existiu uma sociedade disciplinar nos termos pensados por Foucault. Todavia, faz um sucesso gigantesco nas universidades, especialmente nas pós-graduações, realizar um projeto de pesquisa que consiste em: a) estudar a obra do autor europeu; b) pegar aspectos tópicos da realidade nacional e encaixar no conceito do autor; c) fazer alguma “pesquisa empírica”, normalmente entrevistas, que “provam” a justeza do encaixe.
Ignorância sistemática da nossa realidade
Consequência? Uma ignorância sistemática da nossa realidade. Cada pesquisador assume seu santo de devoção – normalmente um francês ou inglês – e passa a “pesquisar” até o final da vida a obra desse sujeito e volta e meia tenta falar alguma coisa da realidade brasileira. É bem evidente que esse tipo de produção de conhecimento não tem vocação revolucionária e não está apta a ser o vetor da formação política militante.
Neste ponto é necessário evitar a caricatura muito presente quando falamos de colonialismo cultural. Primeiro, com esta reflexão não afirmamos que não se deva ler autores estrangeiros ou de qualquer outro lugar do mundo, estudando apenas os periféricos numa espécie de “nacionalismo metodológico” ou “epistemologia centrada no Sul”.
Tampouco afirmamos que autores dos países centrais não possam fornecer contribuições importantes ao estudo da realidade dos países dependentes e periféricos. Para ficar em apenas dois exemplos: o estadunidense James Petras e o italiano Domenico Losurdo têm contribuições fundamentais para compreender as lutas das massas exploradas dos países coloniais, semicoloniais e dependentes.
A questão, nessa temática, é bem simples, e pode ser resumida da seguinte maneira: todo conhecimento “universal” deve ter como função melhorar a compreensão da realidade nacional. Perguntas como o que estudar, como fazê-lo e com qual prioridade devem ter este critério como norteador. Ou seja, não há problema nenhum em ler os autores da Escola de Frankfurt desde que, concretamente, o estudo seja guiado pela problemática “em que a produção desses autores ajuda a entender genuinamente minha realidade nacional (e continental)?”
Há um critério objetivo em termos de tempo, esforço físico, dinheiro e desgaste emocional nos estudos. Quem estuda com seriedade todas as modas da França não vai conseguir conhecer o pensamento crítico brasileiro e latino-americano.
O combate ao colonialismo cultural no padrão de estudos e na formação não é feito sem consequências. Tratando diretamente de quem está inserido nas universidades e depende do mercado editorial brasileiro, não se enquadrar nesse padrão colonial tem consequências graves. Nas universidades, mercado editorial, mídias e afins, o colonialismo cultural e teorias adequadas à ordem dominante reinam sem muita resistência.
A dinâmica colonial da universidade e da produção do conhecimento em geral na periferia do capitalismo tem como contraface necessária o academicismo. Academicismo não é sinônimo de estudar muito – como, na maioria das vezes, o tema é apresentado, especialmente no movimento estudantil. Academicismo é uma forma e uma lógica de produzir e repassar conhecimento onde os espaços de produção centram-se em si mesmos, realizando reflexões descoladas dos problemas fundamentais do país e da classe trabalhadora, sem validação social do que é produzido.
Os marxistas não estão imunes ao academicismo. Além de um encastelamento dentro da universidade fazendo pesquisas longe de qualquer dinâmica de atuação política, preocupação em popularizar o marxismo e atuar como intelectual orgânico da classe, muitos marxistas ainda se digladiam em assuntos que são típicos da definição de academicismo que demos acima.
Milhares de folhas de papel gastas no debate sobre a tradução mais fidedigna direto do alemão dos conceitos de alienação e estranhamento, se serviço social é ou não trabalho no sentido ontológico, se György Lukács é ou não é melhor que Louis Althusser, se existe ou não um “corte epistemológico” entre o “jovem Marx” e o “Marx maduro”, se Engels entendia realmente o que é dialética ou imaginava um socialismo ideal como se fosse um profeta religioso.
O militante formado nesse tipo de marxismo não consegue perceber os problemas estratégicos, táticos e organizativos postos pela luta política e, normalmente, não tem respostas para as questões de soberania nacional, produção de ciência e tecnologia, política externa, questão agrária, saúde, cultura, segurança pública etc. Indo além, a conquista do poder não é um problema teórico-prático central a ser enfrentado.
Marx, na mão desse tipo de academicismo marxista, torna-se o autor de um evangelho bíblico onde os capítulos e versículos parecem dotados de poderes sobrenaturais – não deixa de ser coincidência que para a maioria dos marxistas academicistas, autores como Lênin, Mao, Che Guevara, Rosa Luxemburgo, Stálin, Amílcar Cabral, Fidel Castro, Kim Il-sung, em suma, todos os revolucionários importantes do século XX, não devem ser estudados e reivindicados porque eles deturparam o pensamento marxiano.
Esse marxismo academicista também tem outra característica muito marcante (comportamento típico do academicismo no geral): o culto da novidade. Pesquisas rápidas, exigências de produtividade cada vez maior, dinâmica do mercado editorial e necessidade de sempre apresentar o novo como condição para ter espaço na grande mídia, combinado com a formação cada vez mais precária no aprendizado dos clássicos, criam o estranho costume na universidade de redescobrir a roda ou fazer previsões espetaculosas que nunca se confirmam.
Constantemente se descobre o “novo mundo do trabalho”, um “novo imperialismo”, a “nova alienação”, a “nova exploração”, a “nova interpretação de Marx”, a “nova classe trabalhadora”, a “nova luta de classes”, a “nova mercantilização”. Normalmente tais novidades e seus conceitos correlatos fazem um certo barulho, rendem uma boa quantidade de livros, entrevistas, congressos e colóquios e depois somem dando espaço a uma nova moda – na maioria das vezes, inclusive, o próprio criador depois de um tempo abandona o conceito ou teoria “nova” por ele criado.
Mudanças reais nos processos históricos
Neste ponto, novamente, é necessário evitar caricaturas. Não se trata de negar as mudanças na realidade e afirmar que para entender o capitalismo basta ler Marx, Lênin ou Florestan Fernandes e tudo está resolvido. Evidentemente existem mudanças reais no processo histórico de desenvolvimento do capitalismo e essas mudanças exigem pesquisas constantes para apreender os novos fenômenos e modificar sempre que necessário as concepções de forma-organizativa, estratégia, tática e ação política.
Entretanto, todo militante deve manter uma desconfiança saudável do ciclo de produções de novidades do mercado editorial e da universidade e buscar uma sólida formação nos clássicos.
A relação do militante com a ciência, mediada pela organização revolucionária, deve ser a de procurar adquirir os instrumentos para fazer suas análises de conjuntura, julgar a justeza teórica das reflexões científicas e a pertinência dos “novos” conceitos para acompanhar mudanças no capitalismo – é fundamental adquirir essa capacidade de ser um militante apto a questionar e formular e não apenas consumir as teorias.
Nunca é demais lembrar que o núcleo da formação política e produção de teoria revolucionária não pode ser a universidade burguesa e os aparelhos ideológicos hegemônicos do capitalismo. A organização revolucionária deve atuar produzindo uma teoria do Brasil, uma compreensão integral da nossa história, papel no mundo, política e luta de classes, economia, cultura, geografia etc. Uma teoria do Brasil, nas palavras de Carlos Nelson Coutinho:
“Não são muitos os pensadores sociais que formularam, em suas obras, o que poderíamos chamar de uma ‘imagem do Brasil’. Imagens desse tipo articulam sempre juízos de fato com juízos de valor, na medida em que não se limitam a fornecer indicações para apreensão de problemas específicos da vida social de nosso país (como, por exemplo, o sistema colonial, a industrialização, a consciência do empresariado, o movimento sindical etc. etc.), mas se propõem – para além e/ou a partir disso – a nos dar uma visão de conjunto, que implica não só a compreensão de nosso passado histórico, mas também o uso dessa compreensão para entender o presente e, mais do que isso, para indicar perspectivas para o futuro” (COUTINHO, 2011, p. 233).
Essa teoria do Brasil, elemento fundamental para atuar como sujeito nacional-revolucionário, passa também por construir uma cultura e identidade nacional que destaque a rebeldia, as lutas populares, o papel das classes exploradas (inclusive antes do capitalismo) na construção do que hoje chamamos de Brasil. É preciso que a formação política prepare o militante revolucionário visando ser o melhor no debate sobre políticas públicas, o mais qualificado nas reflexões sobre reformas estruturais, conecte sempre esses debates à tomada do poder político e seja o portador de uma identidade nacional-revolucionária.
Tudo na formação política deve responder a duas perguntas: como esse conhecimento auxilia na maior compreensão da minha realidade? Como, munido desse conhecimento, posso pensar aspectos da conquista do poder? A Revolução Brasileira e sua vocação latino-americana, enquanto problema de pesquisa, é o condutor de toda formação política e produção de conhecimento.
Contudo, todo conhecimento teórico do Brasil só faz sentido se é aprendido em conjunção com a prática política. Unir teoria e prática na formação política é bem mais proclamado que feito. Para realizar essa união, materializando o sentido forte do conceito de práxis, é necessário pensar a formação política como um aprendizado também prático-político.
Tão importante quanto debater a dominação política no país e os aparelhos repressivos do Estado burguês é aprender táticas de protesto urbano para defender-se da polícia, entender a lógica de atuação do Batalhão de Choque, pensar formas práticas de como fazer trabalho político nos quartéis, ter formação em artes marciais para formar comissões de segurança qualificada. Os grandes problemas teóricos do Brasil precisam ser pensados e conectados com aspectos práticos da atuação e luta política.
Uma organização que tem vários especialistas em Gramsci e consegue produzir milhares de páginas sobre hegemonia, mas é totalmente incapaz de produzir um aparato de agitação e propaganda com qualidade e alcance crescente, não consegue combinar teoria e prática. Debater a questão agrária e não formular e ter formação sobre como fazer trabalho político no campo – e se defender, por exemplo, da ação de capangas de latifundiários armados – é igualmente uma ruptura entre teoria e prática.
Em resumo, todas reflexões sobre os temas centrais da luta de classes ensejam consequências prático-organizativas e de ação política que devem também ser objetivo de formação, aprendizado e treinamento. Na militância existe o costume de chamar de formação o estudo teórico e a “parte prática” de oficina.
Então, ainda no exemplo que usamos acima, temos formação sobre o pensamento de Antônio Gramsci e oficina de comunicação ou produção audiovisual. Essa lógica tende a reproduzir a separação entre teoria e prática e não interligar as duas dimensões, unindo-as de forma orgânica. A oficina de audiovisual é tão formação política quanto a palestra sobre hegemonia e cultura.
Claro que existe o perigo do “praticismo”. A organização que treina o militante apenas para ser um bom agitador, vendedor de jornais, organizador de assembleias e afins, mas é pobre – ou às vezes até nega – a formação sobre os temas fundamentais da economia, política, fundamentos do marxismo, etc. Sem negar a especialização e a divisão social do trabalho numa organização revolucionária, é imprescindível o balanceamento das duas dimensões, o equilíbrio e a unidade na construção do programa de formação.
Também é evidente que uma organização revolucionária não vai formar todos os quadros que precisa. É exigir demais que uma organização que não controla o poder político forme todos os quadros especializados que precisa para computação e contrainteligência ou mesmo para aprender teoria militar e manejar armas, por exemplo. Para isso é fundamental recrutamento direcionado, aproveitando as próprias habilidades desenvolvidas nas instituições da ordem burguesa.
Uma organização revolucionária onde os membros com maior nível de ensino formal são, basicamente, professores de história, sociólogos e assistentes sociais não caminha bem. Contadores, administradores, engenheiros, cientistas da computação e químicos, para citar apenas alguns exemplos, têm muito a contribuir com ações e o programa de formação de uma organização.
Vanguarda revolucionária
A vanguarda revolucionária, para ser um polo criativo de teoria e ação política, precisa condensar uma gama variada de conhecimentos técnicos, experiências pessoais e formação acadêmica. Tudo isso filtrado e aproveitado de forma imaginativa e adaptada à dinâmica sempre mutável da luta de classes.
Ao lado das chamadas “habilidades práticas”, é necessário desenvolver capacidades emocionais e físicas. Um exemplo básico. Comecei a ir para manifestações de rua em 2011. Em 2012 foi a primeira vez que vi um ataque do Batalhão de Choque. Mesmo nascido e criado numa favela e cansado de ver armas, violência, tiroteio, foi impossível manter a calma e pensar racionalmente. Hoje, quando estou em um ato, com o ataque do Batalhão de Choque, não perco a calma, consigo pensar friamente, analisar as possibilidades (isso sem desconsiderar a adrenalina e o medo, naturais e necessários em momentos como esse).
Essa é uma habilidade desenvolvida. Habilidade que pode parecer “abstrata” à primeira vista, mas faz toda diferença entre ser preso ou não numa manifestação, por exemplo.
Confiança na fala e no que defende, capacidade de pensar em soluções para os problemas da atuação política cotidiana, identificar problemas e pensar soluções ou potencialidades não exploradas, saber como agir em momentos de perigo (e calcular os perigos), capacidade de articular alianças e negociar, analisar correlações de forças (seja a nível nacional ou local, como na disputa de um sindicato ou DCE), adaptar a estratégia política nacional ao contexto local, inovar na ação, saber produzir o discurso ou a palavra de ordem que vai cativar as pessoas… etc. Os exemplos são muitos. Todos esses recursos emocionais não são inatos, não nascemos com eles, não é questão de talento, mas de aprendizado político.
É claro que algumas pessoas vão ter facilidade maior que outras para certas tarefas e no desenvolvimento de habilidades específicas. Usando novamente um exemplo pessoal, desde a mais tenra idade, falo bem em público e me saía bem em seminários na escola. Mesmo assim, essa habilidade foi desenvolvida, passou por estudo, reflexões, formações políticas, aprendizado adquirido fora da militância (fiz teatro por alguns anos).
Sem negar esses condicionantes pessoais, a organização precisa planificar a criação dessas habilidades. Certa visão caricatural e infantil do que é uma organização revolucionária acha que formações sobre expressão corporal, oratória ou escolas de teatro não são parte da cultura revolucionária. Erro grosseiro.
Aliado a isso, existem procedimentos organizativos, como reuniões de avaliação e debates após atos de rua, ocupações, eleições de entidades de base e afins que ajudam a refletir sobre a prática, fazer da experiência recém adquirida fonte de aprendizado e amadurecimento.
O militante deve ser estimulado pela organização a pensar sempre nas suas ações, criticar e ser criticado, aprender com os erros – um aprendizado coletivo. Reuniões, assembleias e plenárias das organizações também devem ser momentos de formação política.
Cultura física na formação política
Agora entramos no último ponto da nossa reflexão. Nos últimos anos, a esquerda brasileira perdeu uma cultura física na formação política. É raro um debate sério sobre cuidados com a forma física e preparação para ações políticas. O quadro é tão grave que falar da importância de manter preparo físico ou praticar artes marciais pode render acusações de culto da violência, masculinismo e neostalinismo.
É importante pontuar que, nessa temática, o que vivemos é uma regressão. A cultura de valorizar o não sedentarismo, certo preparo físico para ações ou manter-se com um consumo moderado de drogas (lícitas e ilícitas) é algo histórico da cultura das esquerdas brasileiras, em especial da tradição comunista.
A figura de Carlos Marighella, muito falada nos últimos tempos, é responsável por frases como essa do Minimanual do guerrilheiro urbano: “o guerrilheiro urbano somente pode ter uma forte resistência física se treinar sistematicamente. Não pode ser um bom soldado se não estudou a arte de lutar. Por esta razão o guerrilheiro urbano tem que aprender e praticar vários tipos de luta”.
Debater preparo físico e uma cultura política de não sedentarismo não significa nenhum culto ao corpo e à estética corporal. Preparo físico para correr, passar o dia trabalhando numa ocupação ou participar de ações de resistência à polícia não deve se confundir com a estética dos músculos. Ter um bom preparo físico é diferente de ser musculoso.
O segundo espantalho a derrubar é que estimular atividades físicas e artes marciais não se confunde com nenhum “culto masculino da violência”. Não faz sentido centrar o treino de artes marciais aos homens. É claro que, tendencialmente, até pelos aspectos do patriarcado, será mais fácil homens buscarem esse tipo de habilidade. Cabe à organização balancear e desconstruir isso.
Outra caricatura, muito comum no tempo das redes socais, é desconsiderar a necessidade de coisas como artes marciais já que estamos na era dos drones, bombas atômicas, mísseis supersônicos etc. Note, é lógico que contra um drone não adianta muito correr bem ou saber karatê.
Mas até onde me consta, no Brasil, não estamos enfrentando bombardeios de drone todos os dias. Armas modernas são enfrentadas com armas modernas, mas na luta política cotidiana, fora de uma situação de guerra civil ou extremo aguçamento da luta de classes, faz muita diferença o preparo físico para algo básico, como correr ou saber se defender de um ataque de um neonazista.
A organização política, sem qualquer tipo de moralismo, precisa incentivar hábitos saudáveis, consumo moderado de drogas (incluso álcool), prática de exercícios, treino de artes marciais, esportes e afins. É complicada a cultura política que em espaços coletivos, como congressos partidários, tem como único ambiente de socialização as “culturais” à noite, que não passam de ambientes para beber, fumar e transar (e, friso, nada contra beber, fumar e transar, mas se os espaços coletivos se resumem a isso, temos um problema político e organizativo).
Mundo a fora, temos tradições de academias vermelhas: espaços para treino de artes marciais e trabalho político com a juventude e setores da classe trabalhadora. Aqui no Brasil temos poucas experiências de academias vermelhas e formação séria para as comissões de segurança usadas, por exemplo, em atos de rua. Normalmente, a comissão de segurança é formada por homens com maior porte físico e alguma experiência política. Não preciso dizer o quanto isso é amador e anti-leninista.
Ainda podemos acrescentar outro problema. É amplamente conhecido o fato de que as academias de artes marciais estão tomadas pela ideologia conservadora – e na atual quadra histórica, pelo bolsonarismo – e até grupos organizados de fascistas. Não parece fazer muito sentido termos um “exército” potencial de fascistas praticando artes marciais e a militância ser alheia a isso. O amor não vai vencer o ódio. E livros não vão vencer a violência.
Nesse momento do escrito, alguém pode pensar que coloquei um conjunto de demandas muito amplas para uma organização revolucionária e que a realização de todos esses aspectos da formação demandaria muita organização, disciplina e estrutura. Tudo isso é verdade. Mas tomar o poder político das mãos da burguesia não é fácil. Uma organização vocacionada para a tomada do poder é, em germe, o núcleo do futuro Estado proletário e o ambiente de pré-criação do novo homem e da nova mulher. A formação política precisa estar à altura dessa grandiosa tarefa histórica.