
O governo federal interferiu 138 vezes no trabalho de jornalistas da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), desde o início do mandato do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) até julho de 2020. Foi o que apontou um dossiê produzido por funcionários do órgão em parceria com sindicatos e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), com denúncias de “censura ou governismo” em pautas e matérias da empresa realizadas naquele período.
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Segundo Márcio Garoni, diretor da Fenaj e jornalista da EBC, quando políticas públicas do governo são abordadas, não existe, por exemplo, a visão do contraditório, “que é essencial ao jornalismo em qualquer lugar”. Ao contrário, “ganhou muita relevância o papel de exibir as políticas do governo, mas perdeu relevância nos veículos da EBC o papel mais crítico, que também é dever nosso”.
Nesse contexto, a abertura da CPI da Pandemia no Senado, que investiga ações e omissões do governo federal no enfrentamento à pandemia, agravou a relação entre funcionários da EBC e dirigentes, pressionados pelo governo a dar uma versão dos fatos favorável ao Executivo.
Em entrevista exclusiva para o Socialismo Criativo, o diretor-executivo do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF), Daniel Ito, fala sobre a pressão vivida pelo jornalista Victor Ribeiro, na Rádio Nacional. Ribeiro teve que mudar o tom da sua cobertura, que, num detalhe da sua cobertura, foi convidado a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) institucional.
Confira a entrevista sobre censura na EBC
Socialismo Criativo – Como ocorreu o evento que culminou na repressão institucional?
Daniel Ito – A cobertura da CPI da Pandemia na Rádio Nacional estava dividida entre os quatro repórteres que cobrem política nacional desde 2015. Nos primeiros dias, houve relatos de tentativa de censura, mas eles conseguiram reverter, porque os repórteres da rádio são muito unidos. Na segunda semana, o Victor cobriu, durante a tarde, o depoimento do presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, e, na hora do vivo no jornal das 18h, a editora retirou o trecho em questão. Como o texto chegou em cima da hora, ele comentou com a coordenadora de edição (que é a editora-chefe do jornal) que entraria ao vivo como estava, mas que precisava incluir aquele trecho na [matéria] consolidada, que ficaria para o dia seguinte e iria para a Radioagência Nacional, que abastece milhares de emissoras pelo país.
Depois, ele voltou a conversar com a editora e falou com a coordenadora de reportagem e com a coordenadora de edição. Elas argumentavam que não deveria entrar em polêmica, mas ali claramente não era uma polêmica: era uma instrução oficial, em on, da maior autoridade de vigilância sanitária do país, com grande potencial de salvar vidas. O trecho estava como um registro de serviço, entre a primeira e a segunda sonoras. O repórter chegou a mandar links das matérias da CNN, do Uol e do G1, que traziam essa fala do Barra Torres no título, destacando que ele contradizia Bolsonaro. O Victor não fez isso, por entender que esse bate-boca não interessa à comunicação pública, mas precisava registrar em algum trecho da matéria. Como não houve acordo, o Victor enviou na lista de distribuição de e-mails da rádio o texto e as sonoras, para que outro colega que se sentisse mais à vontade gravasse.
Socialismo Criativo – E alguém gravou?
Daniel Ito – Logo no dia seguinte, os quatro repórteres foram substituídos por apenas um colega, que costumava fazer a reportagem local do DF. Como o horário dele vai até as 17h, as reuniões que vão até mais tarde ficaram descobertas no final e as entrevistas coletivas dos membros da CPI deixaram de ser feitas. O Victor não soube dizer se a matéria censurada foi gravada
Socialismo Criativo – Foi aí que surgiu o termo? Como foi esse dia?
Daniel Ito – Isso ocorreu no dia 10 de maio, mas o Victor só foi notificado do TAC no dia 17 de junho. Ninguém da empresa explicou tanta demora, mas esse tempo serviu apenas para elaborar a acusação. Em momento algum o Victor teve a oportunidade de se defender.
Socialismo Criativo – Mas como se deu esse processo, até o conhecimento do repórter até a negativa de assinar?
Daniel Ito – O Victor foi chamado a uma reunião presencial na empresa, com a gerente de Radiojornalismo e uma representante da Diretoria de Jornalismo. Ele apresentou alguns argumentos verbalmente e informou que levaria o TAC à análise de advogados para decidir se assinava ou não. A representante da diretoria sequer soube dizer com exatidão o prazo para a resposta dele. Mas o Victor respondeu na segunda-feira seguinte, após ser orientado pelo advogado particular que ele constituiu e por dois advogados do Sindicato a não assinar e justificar por escrito essa recusa.
Socialismo Criativo – O que foi utilizado como justificativa?
Daniel Ito – O TAC argumenta que o Victor não cumpriu o papel dele como repórter, mas entendemos que cumpriu até o limite da ética jornalística. Tanto que enviou o texto da reportagem e as sonoras já cortadas, para quem quisesse gravar. Ele tomou a decisão com base na Lei de Criação da EBC, no Manual de Jornalismo da EBC e nos códigos de Ética da EBC e dos Jornalistas Brasileiros.
Socialismo Criativo – E o que aconteceu após a recusa do Víctor?
Daniel Ito – A chefia tirou todos os repórteres de política da cobertura e abriu, secretamente, um procedimento de apuração unilateral, que resultou no TAC e só foi levado ao conhecimento do Victor quando estava finalizado. Segundo esse TAC, independente do que acontecesse, o Victor seria obrigado a gravar qualquer reportagem que a chefia demandasse durante os próximos 12 meses.
Socialismo Criativo – E após a recusa, como ficou a situação internamente?
Daniel Ito – O Victor ainda está em trabalho remoto, produzindo conteúdo, gravando entrevistas, fazendo participações ao vivo e fechando matérias em casa, porque está incluído em um grupo de exceções definido pela empresa e, por isso, ainda não retornou ao trabalho presencial. Mas ele me disse que a relação com a chefia imediata e com a editora que continua editando o trabalho dele é como se nada tivesse ocorrido. Ele não está magoado com elas, porque entende que a medida faz parte de uma conjuntura de perseguição aos representantes dos trabalhadores, cada vez mais intensa na empresa. No dia seguinte à notificação do TAC do Victor, um outro diretor do sindicato foi comunicado pela mesma gerente que tinha sido transferido de setor, também sem qualquer possibilidade de ser ouvido.
Ele argumentou que vinha se qualificando nos últimos anos e que a transferência atrapalharia bastante os planos profissionais dele, mas a gerente foi irredutível. É uma pena que pessoas que ocupam cargos temporários e remunerados com dinheiro público aceitem perseguir colegas. Ao esvaziar o papel da EBC de informar a população corretamente e se ocupar em perseguir quem zela por isso, a impressão que dá é que essas chefias querem acelerar o processo de extinção da EBC anunciado pelo governo. Mas a gente segue firme na resistência.
Socialismo Criativo – São esperadas punições?
Daniel Ito – Se a empresa cumprir os códigos de Ética dela própria e dos Jornalistas, a própria Lei de Criação e o Manual de Jornalismo, nada. Se eles desconsiderarem isso para tentarem puni-lo, nossos advogados e o advogado que o assiste já estão prontos. Esse segundo cenário seria um grave atentado contra a democracia e a liberdade de imprensa. Acreditamos que, apesar de puxar a corda, a empresa não vai ultrapassar o limite da legalidade. Mas o TAC é aplicado em casos leves, como reconhecido pela própria empresa no documento.
Se a EBC quiser puni-lo, o máximo que pode ocorrer é abrir uma sindicância com o objetivo de aplicar uma advertência. Seria a primeira oportunidade para ouvir o Victor em todo esse processo que é desgastante e infrutífero. Como em outras recentes sindicâncias motivadas por assédio institucional e autoritarismo, acreditamos que a insistência da empresa nesse sentido de investigar o repórter pode ser uma oportunidade de apontar com mais clareza o que é certo e responsabilizar a chefia adequada na esfera administrativa. Se isso ocorrer, o Victor, os advogados e nós estamos dispostos a responsabilizar as chefias também na esfera judicial.