
A velocidade é a marca do nosso tempo e nada escapa da aceleração constante, muito menos a moda. Durante os anos 1990 as estratégias do fast fashion começaram a ser colocadas em prática, mas foi nos anos 2000 que ganhou visibilidade e muitas prateleiras.
Há quem defenda que esse modelo de rápida produção, venda e consumo ajudou a democratizar o acesso às roupas. Mas a professora Joana Contino discorda e vê como mais uma maneira que o capitalismo encontrou para continuar sua constante expansão.
“O capitalismo é um sistema que está sempre em expansão. Então, precisa produzir mais, não pode estagnar. O fast fashion expressa essa dinâmica para que as indústrias produzam mais e explorem mais os trabalhadores”, observa Joana que é doutora e mestra em design pela PUC-Rio.
Ela foi a convidada desta semana do Socialismo Criativo Entrevista – Moda e Política. Contino é autora da tese “Design, ideologia e relações de trabalho: uma investigação sobre a indústria da moda no capitalismo tardio” e da dissertação “Fast Fashion: apontamentos sobre as transformações da moda na condição pós-moderna”.
Ela é professora nos cursos de Design e Comunicação Social na UNESA e no Mestrado em Gestão da Economia Criativa, na ESPM do Rio de Janeiro.
As entrevistas são conduzidas pela secretária de redação do site Socialismo Criativo, Iara Vidal. A jornalista é pesquisadora independente dos encontros da moda com a política e representa o movimento Fashion Revolution em Brasília. Ela é modativista para que a produção seja justa, ética e consciente. E que preze pelas pessoas e pela natureza acima do lucro.
Nesta quinta-feira (5), o tema foi “Fast Fashion: Garoto Propaganda do Neoliberalismo”.
Base marxista
Contino é marxista e seus estudos são realizados a partir desse ponto de vista. Ela discorda das críticas de que esse seria um referencial teórico atrasado. Para ela, apesar de todas as mudanças que o mundo passou e passa desde que Karl Marx publicizou suas teorias, o capitalismo segue no mesmo sentido de expansão e exploração.
Além disso, ela adotou o conceito de capitalismo tardio – não de pós-industrial. Isso porque numa era pós-industrial as máquinas teriam tomado o lugar dos seres humanos na produção e a luta de classes estaria superada. Nada disso, porém, se concretizou. Pelo contrário, na avaliação de Contino, o modo de produção industrial atual acirra ainda mais as disputas do capital do trabalho.
“A gente entende que o momento contemporâneo não é novo, mas um desdobramento histórico do Marx descreveu. No fast fashion, quando a gente fala em produção industrial, e não pós, a gente está falando também das pessoas que estão envolvidas nesse processo produtivo. A gente tem que situar os trabalhadores nesse modelo”, explica.
Mas o consumo não é ditado pelo consumidor?
O discurso predominante na mídia e até no meio acadêmico era, justamente, o entendimento de que o aumento da produção no mundo da moda atendia a demanda dos consumidores “ávidos por novas peças”, observa a professora. Porém, as coisas não são simples assim.
Embora as pessoas obviamente tenham a sua individualidade e poder de escolha, a produção é que determina o consumo.
“Os consumidores vão exercer influência na produção, tanto que se faz pesquisas de mercado. Mas essa influência vai até certo ponto e não determina como e se é possível se produzir. Se a indústria da moda não tivesse capacidade de suprir o fast fashion, os consumidores poderiam querer consumir mais, mas não seria possível”
Joana Contino
Para a secretária de redação do Socialismo Criativo, é importante entender o ciclo produção-consumo. “As coisas não são separadas. São produto da condição histórico material que a gente vive”, observa.
Fast fashion e a precarização do trabalho
A precarização do trabalho é uma realidade vivida em todos os setores. Está em curso e é inerente ao capitalismo. A produção de vestuário, contudo, tem características que favorecem a intensidade dessa precarização, observa Contino.
“Uma das premissas do fast fashion, por ter se popularizado por meio das marcas de varejo popular, é que se barateia a produção, ainda que grandes marcas também se utilizem dessas relações de trabalho até em condições análogas à escravidão”, afirma.
Isso porque quando se pensa em costurar, normalmente, a primeira ideia que vem à cabeça é de se fazer uma peça completa. Porém, não é o que ocorre na indústria da moda onde a produção de cada peça é feita de maneira parcelada.
“A costureira – ou a criança que ajuda a costureira – precisa aprender a operar a máquina e realizar pequenas partes. Uma costureira industrial, muitas vezes, não vai saber montar uma peça toda. O que faz com que seja barato porque se pode treinar qualquer pessoa”
Joana Contino
Além disso, o maquinário é barato o que, de acordo com Contino, torna relativamente fácil montar uma oficina de produção.
Readequação mundial do mercado da moda
Uma das mudanças recentes e que estão em curso na produção de roupas e afins é o aumento dessas indústrias na África Subsaariana.
“Estimulada tanto pela produção local do algodão como pelos baixos custos da força de trabalho e por uma política de aumento do salário na China, como aumento do salário mínimo e benefícios. A China é a maior [produtora], mas estão fazendo esse movimento para outro continente onde não existe a produção para o mercado global”, observa.
Por outro lado, no Brasil está se vendo o crescimento de fusões, especialmente, por conta do agravamento da crise econômica por conta da pandemia da covid-19.
Como exemplo, ela cita a compra da Hering pelo grupo Soma, um dos maiores varejistas de moda do país.
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Democratização da moda
Enquanto alguns defendem o fast fashion como uma forma de facilitar o acesso aos produtos da moda, Joana Contino acredita que é necessário pensar também sobre o tipo de democratização queremos.
“De fato são produtos mais baratos, de qualidade de design – não exatamente de qualidade durável. Porque democratizar com produtos que vão durar duas lavagens, eu não sei se vale a pena”, questiona.
Fast fashion x slow fashion?
Movimento contrário ao fast fashion, o slow fashion se coloca como o oposto desse tipo de produção. Mas não é assim que a professora avalia esse movimento.
“O slow fashion sempre existiu. Tem gente que faz a própria roupa. Não acho que seja uma antítese. É um movimento, não desmerecendo as marcas e empresas que pretendem autenticamente ter uma produção mais sustentável. Mas acho que essa lógica individualista de que ‘eu vou comprar menos, ou atemporal” – que também é questionável do ponto de vista do design -, não resolvem o problema. Se se torna um nicho de mercado que é caro”, afirma.
Porém, Contino lembra que “explorar está na base do sistema”. Por isso, é muito difícil ter uma empresa que consegue produzir sem explorar alguém.
“É um caso clássico de apropriação do capitalismo de engolir um movimento, ainda que as pessoas façam isso com as melhores intenções. Eu ser adepta não muda o sistema.”
Joana Contino
Para Iara Vidal, “é uma capacidade do capitalismo que é capturar o espírito do tempo, transformar em mercadoria e vender”.
“Eu louvo qualquer iniciativa para mitigar os efeitos da monstruosidade que é a indústria global da moda. Isso pode mudar nossa consciência, nosso bem estar. Mas não está mudando o sistema.”
Iara Vidal
No mesmo sentido, a jornalista critica a suposta sustentabilidade pregada pelo slow fashion, justamente, por isso não ser possível quando se trata do capitalismo. No máximo, “atributos sustentáveis” na produção.
Para Joana Contino, trata-se de um discurso “elitista”.
“Como você vai cobrar que a pessoa que não tem saneamento básico, não tem o que comer às vezes, passa todos os perrengues possíveis, que ela vá se preocupar com o tipo de tecido. Tem que tomar cuidado com esse tipo de discurso porque ele mascara o problema”, afirma a professora.
Por isso, Iara Vidal defende que é preciso sempre questionar o que é posto.
“Quem disse que não pode? Pode [comprar] onde o dinheiro der, como a sua condição histórico-material puder. E todo mundo tem direito de ficar bonito. Mas a questão é sistêmica”, alerta.