
Nunca um meme fez tanto sentindo quando o que diz: “Somos as netas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar“. As imagens do julgamento do estupro sofrido por Mariana Ferrer, divulgadas pelo The Intercept Brasil na ultima terça-feira (03/11) mais pareciam um julgamento inquisitório do que qualquer coisa em que estivesse sustentado pelo devido processo penal.
Mariana, a vitima, foi julgada e sentenciada como milhões de mulheres ao longo da história da humanidade. Julgada e sentenciada por ser mulher por quatro homens que estavam ali para na defensa da, talvez, mais sólida instituição criada pela a humanidade: a instituição homem.
A Mariana, sentenciada com o crime de ser mulher, coube tentar com a voz romper com o absurdo cenário inquisitório que lhe fora criado, mascarado de julgamento e se defender. Nem mesma voz da defesa, também de homem – se posicionou com a forma veemente que o momento absurdo exigia.
Historicamente, as mulheres vêm sendo sentenciadas, caladas… queimadas até a morte. Ao que parece muita coisa ainda precisa ser mudada para que se possa sonhar com um sociedade de equidade de gêneros. Mas não está sendo fácil para as mulheres, que estão aprendendo a se unir, vide o tamanho da repercussão negativa e das vozes que levantaram em favor de Mariana.
E nem para os homens que tentam, seja pela violência física e de ações como o julgamento vergonhoso que fizeram da vitima culpada, proteger a instituição homem.
Mas, afinal, por que não existe estupro culposo?
O crime de estupro está previsto no art. 213 do Código Penal brasileiro, cuja redação é clara:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2o Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos
Em “juridiquês”, dizemos que o bem jurídico protegido por esse artigo é a dignidade sexual da vítima. Ou seja, a essência da proteção está em proteger a pessoa (homem ou mulher) de ser constrangida a satisfazer a lascívia alheia.
Não é necessário, segundo a lei, sequer que haja a penetração para configurar o estupro. Basta que haja o constrangimento por violência (que não precisa ser física, necessariamente) ou ameaça que obrigue a vítima a satisfazer a libido do agressor.
Percebam, leitores e leitoras, que o texto da lei em momento algum fala em modalidade culposa, ou seja, quando não há intenção de agir com a intenção fim. Em termos jurídicos, isso significaria dizer que o agressor “estuprou sem querer estuprar”. O que é impossível já que a intenção é a fonte do desejo do estuprador na essência.
É exatamente isso que defende o autor brasileiro Rogério Sanchez Cunha em seu manual do Direito Penal: “Faz parte a intenção de realizar ato de libidinagem, ou seja, a intenção sexual é inerente ao dolo, nos delitos contra a dignidade”.
No caso da Mariana Ferrer, o Ministério Público de Santa Catarina “inovou” na interpretação não porque tenha dito explicitamente que houve “estupro culposo”, mas pode ter alegado que não houve dolo (intenção e consciência) da vulnerabilidade da influencer. O promotor, homem, apontou então que “não seria razoável presumir que o empresário soubesse ou devesse saber que a mulher não desejava a relação sexual”.
Afinal de contas, os homens são irresistíveis, não é mesmo?
O promotor consegue ir além e argumenta que Mariana “estava com vestes ajeitadas, de pé, conseguia caminhar sem socorro, não apresentava troca de palavras e, portanto, não aparentava estar incapaz de resistir ao interesse do acusado”. Ou seja, só seria estupro, na lógica do membro do MP-SC, se ela estivesse nua, deitada, desmaiada e inconsciente.
É importante perceber que a narrativa imposta pelo MPSC é machista por natureza. Ele não foca na conduta de André Aranha para absolvê-lo, mas na conduta da vítima. Talvez porque não tivesse como contrariar as provas obtidas, como o sêmen e a filmagem.
Essa escolha de ponto de vista é que permitiu a absolvição do acusado de estupro. Isso acontece porque os homens se protegem e as mulheres ficam à mercê dessa conivência.
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