
Uma das cenas mais repetidas do esporte mundial em 2020 aconteceu nesta semana: durante um jogo entre o badalado Paris Saint-Germain e o time turco Istanbul Basaksehir, pela Liga dos Campeões da Europa, terça-feira (8), jogadores deixaram o gramado do estádio Parque dos Príncipes em protesto contra uma fala racista dita pelo quarto árbitro do jogo, o romeno Sebastien Coltescu.
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De acordo com os relatos do dia, como relembra reportagem do UOL Esportes, Coltescu queria chamar a atenção do árbitro do jogo, perto de 15 minutos do primeiro tempo, para punir ou expulsar um membro da comissão técnica do Istanbul, o camaronês Pierre Webó. O juiz Ovidiu Hategan não entendeu. Então, o quarto árbitro disse o seguinte para indicar quem era: “O negro está ali. Vai ver quem é. Aquele negro não pode continuar a agir desta forma, retire-o”.
Quem estava no banco de reservas do Istambul, especialmente o atacante senegalês Demba Ba, do Istanbul, escutou a declaração de Sebastien Coltescu e no mesmo momento mostrou incômodo. O jogador fez uma pergunta, que só foi possível ser ouvida pela qualidade da transmissão da competição e a falta de público no estádio.
Você nunca diz: ‘este cara branco’, você diz ‘este cara’. Então me ouça, por que quando você menciona um cara negro você diz ‘este cara negro?”.
Demba Ba foi expulso, a confusão se ampliou, a dupla do PSG Neymar e Mbappé se recusaram a retomar o jogo com a presença do quarto árbitro e os dois times saíram de campo. A partida foi cancelada e remarcada para o dia seguinte, quando o time francês goleou por 5 a 1 e se envolveu em diversas manifestações contra o racismo conjuntas com os turcos.
Houve atitude racista neste caso?
As imagens rodaram o mundo, mas algumas perguntas povoaram as reações do público: por que a fala do quarto árbitro foi racista, se ele aparentemente tinha só a intenção de indicar uma pessoa de um grupo? Por que a atitude foi tão forte sendo que há no futebol, historicamente, exemplos muito mais flagrantes de racismo e discriminação?
O UOL Esporte ouviu dois especialistas no assunto: o jornalista e doutor em comunicação Deivison de Campos, que atua no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas e lidera o grupo de pesquisa Mídia e Complexidade nas Sociedades Contemporâneas da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), no Rio Grande do Sul; e o doutor em letras Gabriel Nascimento, líder do Grupo de Pesquisa em Linguagem e Racismo da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Segundo ambos, o episódio de terça-feira é histórico, mas fruto de uma discussão sobre o racismo no futebol que tem acontecido há bastante tempo e no mundo inteiro.
Gabriel Nascimento usa uma analogia simples para falar sobre o racismo linguístico que provocou a reação dos jogadores. A língua não é só estrutura, mas contextos.
Imagine que você esteja apresentando slides a uma sala de aula e está claro, então você fala para quem controla a luz: ‘por favor, a luz’. Essa pessoa entende que por estar claro e por eu precisar de luz escura para expor slides ela precisa apagar a luz. Então acaba e você torna a falar a mesma frase, ‘por favor, a luz’, e ela compreende que é hora de ligar a luz. Por que existe essa compreensão diferente se a frase é a mesma? Porque ela pode ter vários significados a depender de quem fala e como fala. Se o repórter do UOL fala de uma escritora negra que ganhou um prêmio é um contexto diferente, porque traz a negritude para a positivação, a trajetória vencedora de uma mulher negra. Tendo implícito de que há racismo no Brasil. Então, quando um europeu branco chama um cara de ‘cara negro’ é um posicionamento racista, porque ele não usa para positivar um homem preto naquele espaço, e sim marcá-lo.”
Um dos argumentos usados por Demba Ba na confusão é que em nenhum momento há identificação de uma pessoa branca pela sua cor, então naquele momento a cor da pele negra foi usada como uma qualidade, uma adjetivação. O quarto árbitro fez a escolha mais simples, porém menos óbvia no universo do futebol, e sua escolha de palavras e posicionamento foi racialista, como explica Deivison de Campos.
“Quando você elege a qualidade fenotípica, a cor da pele, para identificar uma pessoa, sendo que no mundo do futebol teria outras escolhas, você faz uma escolha que terá um desdobramento racista. Ele [Sebastien Coltescu] foi pelo mais simples. Nas relações sociais, identificar pessoas não brancas pela cor da pele coloca os brancos como a norma, a referência. Por isso foi uma escolha racialista. E no momento em que há uma caracterização por elementos raciais é um caso de racismo”,
Diz o doutor em comunicação, que ainda completa:
Hoje, no mundo, qualquer criança escala as equipes, seja no Fifa ou outro jogo, ou no Cartola. É quase impossível um árbitro não conhecer quem era a pessoa ali. E mesmo que não conhecesse não havia necessidade de uma tentativa de apontamento a partir da cor da pele. No futebol as pessoas têm nome, número, apelido, posição, função. ‘Tira o cara da comissão dali’ era uma solução. Perguntar o nome era outra. Mas foi feita uma escolha racialista e o protesto dos jogadores foi um ato contra aquela objetificação do indivíduo, que tira sua subjetividade, o desumaniza. Esse é o princípio de qualquer preconceito.”
Outro elemento destacado pelos especialistas diz respeito ao movimento negro chamar a responsabilidade de quem deve decidir a marcação do racismo, dizer o que é ou não um ato discriminatório. Demba Ba sentir-se ofendido pelo apontamento a Webó tem um peso, ao contrário do que aconteceria se o meia brasileiro Giuliano, branco, do mesmo time, comprasse a briga: “Quem deve decidir a marcação do racismo é a própria comunidade”, diz Gabriel Nascimento.
Com informações do Uol