
Que os jogos eletrônicos possuem um potencial gigantesco que não se limitam somente ao entretenimento não é nenhuma novidade. O mercado de videojogos movimenta bilhões de reais todos os anos e até auxilia no processo de escolarização de crianças e adolescentes.
Contudo, em Mianmar, um jogo para celulares vem se tornando simbolo de resistência e coragem ante à guerra civil instalado no país após golpe de Estado.
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U Sein Lin, professor de história aposentado em Mianmar, nunca jogou videogame na vida. Mas há um mês, enquanto acessava o Facebook, ele encontrou “War of Heroes – The PDF Game“. Ele tem jogado quase sem parar desde então, segundo informações do The New York Times.
Para Sein Lin, 72 anos, matar tropas virtuais de Mianmar é uma forma de participar da resistência real aos implacáveis militares do país, que mataram milhares de cidadãos após tomar o poder no ano passado.
Desde sua estreia em março, War of Heroes foi baixado mais de 390 mil vezes. Muitos jogadores dizem que estão motivados pela promessa dos criadores de doar recursos para ajudar a financiar as forças de resistência no país asiático e ajudar aqueles que foram deslocados pelos combates.
“Mesmo que eu não possa matar soldados que estão matando brutalmente civis, matar no jogo também é satisfatório”, disse Sein Lin. “De uma forma ou de outra, jogar o jogo e clicar até eu morrer vai ajudar a revolução.”
Golpe de Estado
Os militares de Mianmar, conhecidos como Tatmadaw, governaram o país por meio século e há muito tempo estão em guerra com seus próprios cidadãos. Desde que derrubou autoridades eleitas no golpe do ano passado, o regime tentou esmagar a dissidência prendendo líderes da oposição, atirando em manifestantes desarmados, bombardeando acampamentos de guerrilheiros e queimando milhares de casas.
Muitos opositores do regime fugiram para a selva, onde formaram a Força de Defesa do Povo, ou PDF, um exército com mais de 60 mil combatentes sob a liderança do governo paralelo de Unidade Nacional. Um número semelhante de combatentes em áreas urbanas formou unidades de guerrilha semiautônomas, conhecidas como forças de defesa do povo local.
War of Heroes e resistência
War of Heroes foi criado por três desenvolvedores nascidos em Mianmar que deixaram o país antes que os generais tomassem o poder em 1º de fevereiro de 2021. Um deles, Ko Toot, disse que estava motivado a criar o jogo após a prisão e o subsequente desaparecimento da tecnologia colegas da indústria em Mianmar que estiveram envolvidos, ou cujos familiares estiveram envolvidos, em protestos anti-golpe.

Uma versão paga do jogo foi lançada em meados de junho e, em poucos dias, começou a aparecer regularmente nas listas dos 10 melhores jogos da App Store da Apple nos Estados Unidos, Austrália e Cingapura. “As pessoas de Mianmar em todo o mundo estão baixando”, disse Toot.
No jogo, os jogadores vão para a batalha e matam os soldados do regime, subindo na classificação à medida que o jogo se torna mais difícil. Em níveis mais altos, os jogadores podem mirar em espiões civis, celebridades traidoras que apoiam a junta e líderes golpistas.
“Precisamos que você se junte às nossas forças de resistência para proteger pessoas inocentes das forças militares do mal”, diz a descrição do jogo na App Store. “Seu dever é se juntar à Força de Defesa do Povo e se tornar o melhor combatente da liberdade.”
A versão gratuita do jogo ganha dinheiro quando os jogadores assistem a anúncios. A versão paga gera receita quando os jogadores baixam ou compram munição. Os jogadores que jogam o suficiente para ganhar o equivalente a US$ 54 pelo jogo recebem um “certificado de conquista” por participar da Revolução da Primavera, como são conhecidos os protestos em Mianmar, e por doar dinheiro.

Até agora, os desenvolvedores dizem que doaram US$ 90 mil. Cerca de um quinto disso foi para ajudar as pessoas deslocadas. O restante foi doado a mais de duas dúzias de grupos de defesa locais.
Os jogadores em Mianmar precisam de uma VPN, ou rede virtual privada, para contornar as restrições de acesso à internet ao jogo. Para evitar a prisão em postos de controle ou durante paradas policiais aleatórias, os jogadores desinstalam o jogo do telefone antes de sair e baixam-no novamente depois de voltar para casa.
No Brasil, mercado de jogo eletrônico é resistência econômica
Não é novidade que o Brasil se consagrou como o maior mercado de games na América Latina. Em um último levantamento, feito pela empresa New Zoo, o país sul-americano somou mais de US$ 2,18 bilhões em vendas em 2021. Mirando aquecer ainda mais o setor, o governo federal realizou seguidas reduções de impostos sobre consoles de videogames e jogos importados.
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Entretanto, o efeito foi aquém do esperado. Mesmo com as medidas, os preços seguiram em alta. Se em 2020 a alta foi de 51%, em 2021 foi de 20%. Até maio deste ano, o acumulado é de 6%.
Os motivos? Segundo o jornal Valor Econômico, são vários: a desvalorização do real perante o dólar, a escassez global de componentes eletroeletrônicos e o aumento nos preços dos fretes de importação desde o início da pandemia da Covid-19. Todos os acontecimentos pressionam o valor dos jogos para cima.
Contudo, os preços salgados parecem não intimidar o mercado brasileiro, que cresce cada vez mais. De janeiro a maio deste ano, as vendas aumentaram em 13%, de acordo com dados da consultoria GfK.
Acompanhando a demanda, as importações seguem em alta. No ano passado, as importações de consoles e máquinas de jogos de vídeo somaram US$ 114,9 milhões, um aumento 31,7% em relação a 2021, segundo dados coletados pelo Valor Data junto ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). De janeiro a maio deste ano, as importações cresceram 30%, para US$ 58,8 milhões, em comparação a igual período do ano passado.
Com informações do The New York Times e Valor Econômico