
A privatização do ensino público e o ataque sistemático ao pensamento científico encontraram na pandemia da Covid-19 um espaço perigoso de crescimento. Três modalidades de ensino prosperam em meio às imposições de isolamento: ensino remoto, educação à distância (EaD) e ensino domiciliar, o homeschooling.
Esse crescimento é alavancado pela oportunidade de Jair Bolsonaro (sem partido) cumprir promessa de campanha para regulamentar o homeschooling, única das três modalidades não-presenciais sem regulação.
Nesta sexta-feira (28), os ministérios da Educação e da Mulher, Família e Direitos Humanos lançaram cartilha que enquadra a modalidade de ensino em casa na categoria de direitos humanos. A pauta, historicamente, é combatida por movimentos de resistência dos trabalhadores da educação e de estudantes.
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Autorreforma do PSB: ensino gratuito e integral
A proposta de educação domiciliar defendida pelo atual governo vai na contra mão do que acredita o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Em sua Autorreforma, o partido defende ensino fundamental gratuito e em tempo integral. Os socialistas acreditam que a educação é o principal instrumento de combate às desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira. Por isso, o progresso educacional deve ser a base do desenvolvimento socioeconômico.
O PSB advoga por uma educação pública de qualidade como principal política social, pois permite à criança, ao adolescente e ao jovem, ter uma formação para a vida em geral, inclusive para o mundo do trabalho. Somente como política social de Estado, como educação crítica e criativa, poderá assegurar e promover a emancipação do indivíduo.
“Uma revolução criativa na educação, que corresponda à nova era do conhecimento e à rápida transformação tecnológica, precisa alterar radicalmente a própria formação de professores e alunos para a construção de homens e mulheres libertários, tolerantes e criativos.”
Autorreforma do PSB
Governo quer regulamentar educação domiciliar
O homeschooling está em pauta na Câmara dos Deputados em diversos projetos apresentados desde 2012. Em destaque, o projeto de ei (PL 3179/2012), que tem tramitação avançada na Casa.
Apesar de ser considerado inconstitucional por especialistas, o cenário nunca esteve tão propício para a aprovação. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já declarou que vai se empenhar para a aprovação.
Escola Sem Partido
Especialistas apontam que o projeto de educação em casa está alinhado ao “Escola Sem Partido” e às escolas militarizadas. A estratégia é afastar os estudantes de uma educação científica e que promova o pensamento crítico.
Para educadores contrários ao projeto, pensar a educação apenas como “aquisição” de conteúdos colabora para uma política que limita a importância socioemocional da interação escolar e da didática dos educadores, assim como a troca educacional.
Segundo o educador Daniel Cara, a educação fora do ambiente escolar tem como objetivo a formação de “robôs, pessoas acríticas”. Ele considera que lutar contra o homeschooling é lutar pelo direito à educação.
Garantia de acesso à educação
O debate que permeia a aplicação de ensino fora da escola aceitará grandes riscos se ignorar alguns fatores como a exclusão de jovens do acesso à tecnologia, à internet e até dificuldades enfrentadas pelas famílias brasileiras em outros tipos de acesso.
Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar em Contexto de Covid, 19,9 milhões de famílias brasileiras vivem atualmente em insegurança alimentar grave, e, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2 milhões não têm acesso a energia elétrica e 6,35 milhões de famílias não tem uma casa para morar.
Evasão escolar
Apesar de não ter caráter obrigatório, o homeschooling, se regularizado, autoriza que estudantes não frequentem as escolas brasileiras presencialmente. Essa possibilidade, quando confrontada com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2019 que demonstram que, das 50 milhões de pessoas de 14 a 29 anos do país, mais de 10 milhões não completaram alguma das etapas da educação básica, preocupa educadores.
O receio dos especialistas se justifica quando posicionamos o debate no contexto brasileiro de educação. Em um país que agrega números tão relevantes na evasão escolar, o governo considerar tão fortemente diluir a presença dos jovens nas escolas sem mecanismos que os mantenham minimamente ligados à educação, ainda mais em um contexto familiar precário, pode ter um impacto irreversível no acesso à educação para os mais pobres.
Educação pública em risco
A diminuição do investimento em estruturas escolares, a rediscussão sobre o papel do professor e a dificuldade de garantir a aplicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) podem dificultar e até impedir o funcionamento de instituições educacionais públicas.
Esse cenário pode facilitar a privatização do ensino e colocar em risco a garantia de acesso à educação como direito fundamental.
O formato do ensino em um futuro que condicione o acesso educacional às tecnologias também é importante parte do debate. O tempo investido por estudantes no uso de determinadas plataformas de aprendizagem, a padronização de conteúdos e o controle dos dados dos usuários das plataformas também move as discussões sobre o tema, além da forma com que a informação chegará aos estudantes.
Era da desinformação
É ainda difícil mensurar o impacto que teria uma eventual anulação da escola formal na vida dos brasileiros, já que se trata de um país que está entre os 5 mais afetados pela disseminação de fake news, apenas considerando o contexto da Covid-19, e inserido em um contexto mundial que possibilitou em curto período a internação de mais de 5 mil pessoas apenas por uma notícia falsa, segundo estudo publicado na revista American Journal of Tropical Medicine and Hygiene.
A garantia de qualquer filtro crítico real em relação às informações recebidas pelos jovens sobre as mais diversas áreas, hoje minimamente garantido pela presença de profissionais qualificados em cada área do conhecimento no dia a dia dos estudantes, deve ser também parte do debate.
O Projeto de regularização da educação domiciliar defendido pelo governo na Câmara aguarda parecer das comissões e, se aprovado, irá a plenário para apreciação dos deputados. O esforço da presidência da república é pela aprovação no primeiro semestre de 2021.
Com informações de Diário do Centro do Mundo, Outras Palavras, Agência Câmara e Super Interessante