
Um vídeo revoltante ganhou repercussão nas redes sociais neste domingo (18). Crianças negras que participaram de um desfile cívico no município de Piraí do Sul (PR) foram vestidas de escravos para a encenação de passagens históricas do país. No caso dos colonizadores e do grupo que representou a família real portuguesa, as crianças que aparecem nas cenas são brancas. O ato foi em menção ao 7 de Setembro, data do Bicentenário da Independência do Brasil, que foi adiado na cidade do interior paranaense, remarcado para esta manhã.
Os registros que circulam na internet mostram num primeiro momento um barco sendo rebocado por um carro. Dentro da embarcação estão crianças brancas vestidas como “descobridores”, já que uma delas utiliza inclusive um simulacro de luneta, instrumento muito usado pelos navegadores ibéricos nos séculos XV e XVI. Atrás desse grupo, meninos negros em vestimentas que fazem alusão aos cativos, vergonhosamente explorados por mais de 300 anos no país, caminham acorrentados.
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Depois, num outro trecho do desfile, um grupo pequeno de crianças anda pela rua, uma delas com um cartaz identificando a família real portuguesa, que chegou ao Brasil ainda na colônia, em 1808. Esses integrantes também são brancos.
As imagens foram disponibilizadas no perfil oficial da Prefeitura de Piraí do Sul no Instagram.
Veja o vídeo:
Racismo na infância
A primeira infância é o período da vida do zero aos 6 anos de idade, no qual temos a nossa maior janela de aprendizagem. Os primeiros anos de vida são como construir a estrutura de uma casa, que será a base sobre a qual todo o resto se desenvolverá. O cuidado, afeto, nutrição, as interações com os adultos, as brincadeiras e incentivos nas fases iniciais da vida podem ajudar o cérebro a desenvolver o seu potencial máximo. Por outro lado, fatores de risco como a violência, desnutrição, negligência e falta de acesso à educação de qualidade têm o efeito inverso.
Crianças com auto estima elevada se arriscam mais. São cientistas, sonhadoras e aventureiras. Com isso, enfrentam desafios, aprendem a lidar com frustração e desenvolvem persistência. Essas são trajetórias necessárias para o desenvolvimento cerebral, cognitivo e social. Porém, em um cenário no qual o racismo é estrutural e a pobreza tem cor, estereótipos negativos são associados às pessoas negras e esse estigma afeta meninas negras desde cedo na construção da auto imagem.
Uma prática comum do racismo é sua forma velada, atos esse que impactam diretamente na forma como as crianças se percebem. Exemplos disso são associar beleza a pessoas brancas e a feiura a pessoas negras; pentear cabelos lisos enquanto os elogia e, por sua vez, reclamar dos cabelos crespos, enquanto os chamam de difíceis e ruins; ensinar que lápis “cor de pele” é rosa claro, entre outros. Essas práticas são acometidas tanto pelos adultos quanto entre as crianças, que por sua vez, reproduzem aquilo que veem.
Racismo impacta na saúde da criança negra
Um grave fator de risco à saúde que costuma ser pouco explorado é a exposição ao racismo. Segundo o Center on Developing Child da Universidade de Harvard, que compilou estudos sobre como o racismo pode afetar o desenvolvimento infantil, os efeitos variam desde o aumento dos níveis de “estresse tóxico” até maiores chances de desenvolver doenças crônicas na vida adulta.
Os especialistas apontam que o enfrentamento constante do racismo sistêmico e da discriminação cotidiana é um potente ativador da resposta ao estresse. O que pode nos ajustar a compreender os fatores de origem, mas não determinantes, das disparidades raciais na incidência de doenças crônicas não transmissíveis na população. No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, a população negra costuma apresentar uma maior incidência de diabetes mellitus (tipo II) — 9% mais prevalente em homens negros do que em brancos; 50% mais prevalente em mulheres negras do que em brancas — e, de maneira geral, possuem quadros de hipertensão arterial mais complicados.
Já o estresse tóxico, isto é, a vivência uma dificuldade forte, frequente e prolongada, sem apoio adequado de um adulto, gera riscos à construção da arquitetura cerebral das crianças. O que pode acarretar várias consequências a curto prazo, como transtornos do sono, irritabilidade, desenvolvimento de medos e piora da imunidade. E no médio e longo prazo, pode potencializar atrasos no desenvolvimento, transtorno de ansiedade, depressão, queda no rendimento escolar e propensão a um estilo de vida pouco saudável na vida adulta.