
Segundo a coluna de Malu Gaspar, em O Globo, o Ministério da Defesa e a Polícia Federal passaram por cima de nota técnica sobre tráfico de armas para zerar taxa de exportação. Em 14 de julho do ano passado, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) do governo federal tomou uma decisão amplamente comemorada pela indústria de armamentos: revogou o imposto de 150% sobre a exportação de revólveres, carabinas, rifles semiautomáticos e de munições para uso civil na América do Sul e América Central, incluindo os países do Caribe.
A eliminação da alíquota era uma reivindicação antiga das empresas, – especialmente da Taurus, a maior do país. Em 2019, elas já tinham conseguido em 2019 zerar a taxa para armas de menor calibre, mas enfrentavam a resistência da Polícia Federal para eliminar a cobrança sobre a exportação armas e munições de grande porte. O pedido para eliminar o imposto tinha sido feito pela própria Taurus em setembro de 2020. Mas, em dezembro, o delegado responsável pela divisão de repressão ao tráfico de armas, Marcus Vinícius Dantas, fez uma nota técnica se opondo frontalmente à liberação.
O documento, produzido a pedido da própria Camex, lembrava que o imposto tinha sido criado em 2001 com o objetivo de coibir o tráfico de armas, uma vez que muitos armamentos exportados legalmente para alguns países vizinhos, especialmente o Paraguai, voltavam ao Brasil via contrabando, abastecendo o crime organizado e grupos paramilitares. Apenas os cigarros sofriam taxação semelhante, pelo mesmo motivo.
No documento, o chefe da divisão de combate ao tráfico de armas citava como exemplo um levantamento da própria PF que mostrou que, das 11 mil armas ilegais apreendidas no Brasil em 2018, 30% tinham sido fabricadas aqui mesmo e pela própria Taurus. E dizia que, embora não fosse possível aferir em que medida a taxa tinha sido capaz de frear o “tráfico bumerangue”, em razão da “grave deficiência nos sistemas de controles, fiscalização e combate ao crime no país”, revogá-la seria temerário pela mesma razão.
“Se a Polícia Federal, órgão de controle de armas de uso civil no país e responsável por combater o tráfico de armas, sequer possui acesso aos sistemas mínimos de controle e rastreamento administrados pelo Exército Brasileiro aos quais deveria ter, e diante da possibilidade dos órgãos de segurança pública não terem condições hábeis de monitorar se referidas exportações estão ou não impactando nos índices e apreensões nacionais, não seria adequada e oportuna a extinção do imposto de exportação”, afirma trecho do parecer.
Os trâmites do processo constam de uma sequência de documentos obtidos via Lei de Acesso à Informação pelo Instituto Sou da Paz. Eles mostram que, ao contrário da PF, desde o início o Ministério da Defesa foi favorável à revogação do imposto. Mas, depois da nota técnica de Dantas, o assunto esfriou. Fontes da Polícia Federal ouvidas pela coluna dizem que o parecer provocou um mal estar na cúpula da PF, mas nenhuma medida concreta foi tomada para modificá-la. Por meses, o lobby da indústria de armas tentou encontrar um meio de furar o bloqueio da PF.
Até que, em 20 de maio de 2021, sem maiores explicações, a Defesa voltou à carga. Num ofício ao Ministério da Justiça, o secretário de Produtos de Defesa, Marcos Degaut, pediu que a corporação “reconsiderasse” sua manifestação. A resposta veio em junho em dois despachos curtos. Segundo os dois documentos, agora a PF não mais se opunha à revogação da taxa.
O primeiro ofício foi assinado pelo diretor-executivo da PF, Cairo Duarte. E o segundo, pelo coordenador geral de controle de serviços e produtos, Licínio Nunes de Moraes Neto, que apontou uma razão bastante prática para sua posição. “Considerando que cuidamos apenas do controle de armas de fogo em âmbito interno, nada temos a opor”.
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O ofício de Moraes Neto foi encaminhado de volta à Camex como sendo a “manifestação técnica” aprovada pelo diretor-geral da PF, Paulo Maiurino. A divisão que cuidava do tráfico de armas não foi mais consultada. E assim a última barreira para a revogação do imposto de exportação de armas deixou de existir.
Pouco mais de um mês depois, na reunião que discutiu o assunto, os representantes do Itamaraty ainda fizeram ressalvas à revogação da taxa, ponderando que ela representaria uma guinada na posição internacional do Brasil nos foros internacionais sobre o controle de armas atrelados às Nações Unidas, à Organização dos Estados Americanos e ao Mercosul.
“Nesses foros, o Brasil tem advogado que a prevenção e o combate à cadeia delitiva do contrabando de armas, crucial para evitar a expansão da criminalidade organizada regional”, disse o secretário de relações bilaterais do Itamaraty, Pedro Miguel Costa e Silva. Mas ficou por isso mesmo. Em 14 de julho, a revogação da alíquota foi aprovada por unanimidade pelos dez membros da Camex.
Um levantamento feito pelo jornal O Globo em Tribunais de Justiça de todo o país identificou Caçadores, Atiradores e Colecionadores, os CACs, que integram milícias e grupos de extermínio, são armeiros de facções do tráfico e atuam como fornecedores de armas e munição para assaltos a bancos e sequestros. Há processos em que 25 CACs foram acusados ou condenados por fazerem parte de organizações criminosas que agem em nove estados — 60% deles foram presos ou denunciados à Justiça depois do início do governo Bolsonaro, que facilitou a obtenção de registros e possibilitou o acesso a maiores quantidades de armas e munição pela categoria.
Os CACs tiveram seus direitos ampliados desde o início do governo Bolsonaro. Por decreto, o presidente aumentou o limite de armas e munição a integrantes da categoria: atualmente, atiradores podem ter até 60 armas; antes o limite máximo era de 16. O PL 3.723/2019, proposto pelo Executivo para alterar o Estatuto do Desarmamento, pode flexibilizar ainda mais as normas para CACs. Ele propõe, entre outros pontos, a autorização do transporte de uma arma municiada para atiradores e caçadores, sem restrição de horário, e dificulta a fiscalização da categoria, ao determinar que investigadores que desejem ter acesso a bancos de dados sobre CACs justifiquem o motivo da pesquisa. Para Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz e especialista em controle de armas, as medidas favorecem o crime:
“Antes, as quadrilhas tinham dois principais canais de fornecimento de fuzis: tráfico de armas internacional e desvios de forças de segurança, ambos arriscados. Com as mudanças, criou-se uma brecha para acessar armas de guerra, pois um único cidadão pode comprar até 30 fuzis. O custo é em moeda nacional, com transporte documentado pelo Exército e possibilidade de receber em casa, sem riscos.”
Questionado se o certificado das pessoas identificadas pelo levantamento havia sido suspenso, o Exército disse que a informação só pode ser passada a “órgãos competentes, quando necessário, por se tratar de dados sigilosos”.
Está prevista ainda para esta semana na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado a votação de um projeto do governo Bolsonaro que modifica o Estatuto do Desarmamento e amplia ainda mais o limite de armas e munições permitidas para cada colecionador. O projeto está entre as prioridades do governo para o Legislativo neste ano.
Com informações do jornal O Globo