
O mês de abril é dedicado à Revolução da Moda pelo Fashion Revolution, um movimento global que atua para uma indústria da moda mais limpa, justa e transparente.
O Socialismo Criativo preparou uma série de matérias sobre a indústria da moda como uma expressão da economia criativa. Os textos são de Iara Vidal, representante do Fashion Revolution em Brasília e jornalista do portal, e serão publicados ao longo do mês de abril.
Siga a hashtag #FashionRevolution2021 e acompanhe os textos sobre o movimento.
Marca distribui tratamento precoce
Nesta quinta-feira (1o) circulou pelas redes sociais um vídeo no qual o dono da marca de roupas masculinas Oxigênio Adventurewear, Nelson Baptista Silva Neto, de Petrópolis (RJ), defende o “tratamento precoce”, com medicamentos sem comprovação científica, contra a Covid-19 e diz que distribui ivermectina a todos os funcionários da loja.
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O episódio é mais um entre tantos outros casos que reforça que a moda é a filha predileta do capitalismo e está costurada com a política. A roupa que vestimos expressa a forma como nos comportamos e pensamos sobre a sociedade em que vivemos. Assim como a forma como essas peças são produzidas.
Covid-19 impactou modelo de moda rápida
A cada dia em que a crise sanitária avança, com mais mortes e pessoas infectadas e internadas e hospitais lotados, são os governos que têm ido em socorro das vidas. Na crise, o sábio Mercado não tem respostas para o desafio humanitário, pelo contrário, defende Mercado acima de tudo e de todos e que CNPJ é mais importante do que CPF.
O coronavírus arrancou a máscara do Neoliberalismo e deixou a mostra o aumento significativo das desigualdades sociais e da precariedade das relações de trabalho; a relativização da soberania nacional no contexto da ascensão do populismo de extrema-direita; e a transformação de seres humanos em mercadoria.
O impacto da pandemia é sentido em todas as cadeias globais de fornecimento do setor da Moda, de impressionantes US$ 2,5 trilhões. A globalização neoliberal atinge segmentos, como fast fashion, cujas empresas e funcionários nem sempre têm condições de ter acesso aos auxílios emergenciais oferecidos pelos governos, pois atuam com vínculos trabalhistas precarizados ou na informalidade.
Embora as marcas globais de moda rápida tenham controle de toda a cadeia de fornecimento, elas as montaram de forma que trabalhadores não podem exigir o que precisam. O sistema é projetado para funcionar de forma similar ao modelo de negócios de empresas da chamada economia “gig” (dos “bicos” ou trabalhos temporários), como o Uber.
Há um cinismo corporativo marcante nessas empresas, de fingir que os trabalhadores essenciais não são funcionários e deixar o risco com as pessoas menos preparadas para lidar com isso.
Efeito borboleta: de Londres a Bangladesh
Lojas fechadas em Londres (Inglaterra) emulam um efeito borboleta e repercutem muito rapidamente com o fechamento de fábricas em Bangladesh e no Vietnã, enquanto sobem os estoques de algodão na Índia central. A consultoria McKinsey estima que mais de 30% dos participantes do setor mundial de moda, incluindo lojas de departamento e marcas, não sobreviverão à crise sanitária.
Bangladesh é o segundo maior exportador mundial de roupas, onde o setor do vestuário representa 80% das exportações nacionais e emprega mais de quatro milhões de pessoas – sobretudo mulheres das zonas rurais mais pobres.
No país do sudeste asiático, as fábricas de roupas fecharam as portas no fim de março para respeitar as medidas de isolamento social impostas pela pandemia. Naquele período, grandes marcas de prêt-à-porter cancelaram pedidos que chegam a milhões de dólares. No final de abril, foram retomadas as encomendas de varejistas e centenas de fábricas desafiaram a quarentena e colocaram trabalhadores na linha de frente da produção para ajudar o país a reanimar a economia.
Capital do jeans vivencia drama na pandemia
Em Toritama (PE), cidade com 45 mil habitantes e o maior polo de fabricação de jeans na Região Nordeste do Brasil, com 3 mil empresas de confecções, são produzidas, por ano, 60 milhões de peças de roupas. Grande parte dessa produção vem de máquinas de costuras instaladas em fundos de quintal e nas salas das casas, as chamadas facções. Estima-se que 60 mil pessoas trabalham indiretamente para a indústria têxtil da região e outras 15 mil têm emprego direto.
O município do agreste pernambucano é uma espécie de laboratório do conceito de empreendedor apregoado pelo Neoliberalismo. A cidade vivencia um frenesi em torno do jeans, marcado pelo ritmo exaustivo de produção, com estruturas precárias de trabalho e sem quaisquer direitos garantidos aos trabalhadores informais.
A Covid-19 mudou essa rotina e menos de 20% das facções estão funcionando, seguindo protocolos estabelecidos pela prefeitura e pelo governo do estado. Mas o fechamento do polo de vendas (ainda sem previsão de reabertura), que recebia mensalmente 50 mil compradores, impossibilita o escoamento da produção. Além disso, a distância obrigatória entre as máquinas de costura é inviável nas casas pequenas e nos espaços apertados.
Imigrantes em vulnerabilidade em São Paulo
Em Bom Retiro, bairro de São Paulo (SP), a indústria da costura é um motor que parou após o fechamento das lojas do varejo durante a pandemia. Os costureiros, geralmente imigrantes de países vizinhos, como Bolívia e Peru, viram o dinheiro contado do dia a dia desaparecer.
Muitas dessas pessoas vivem em moradias coletivas onde dezenas de famílias estrangeiras habitam pequenos cômodos que também servem como oficina de costura – um ambiente onde é impraticável manter o distanciamento social para frear a disseminação da Covid-19. Esses trabalhadores e suas famílias passam longas jornadas nesses locais, que ultrapassam 14 horas por dia e recebem por peça produzida.
Quando precisam de ajuda, recorrem à Missão Paz, iniciativa ligada à Igreja Católica em que voluntários atuam para angariar e distribuir comida. É a solidariedade de indivíduos ocupando a omissão do Estado mínimo da necropolítica neoliberal.
Moda cresceu a par e passo com o capitalismo
Desde o primeiro giro da Revolução Industrial até a Era da Informação, a moda tem sido um espelho icônico das reviravoltas, avanços e recuos do sistema capitalista. A moda nasceu ainda no período medieval, à época das grandes navegações, ascensão da burguesia e o mercantilismo.
Em sua caminhada a par e passo com o capitalismo, na década de 1980, a indústria da moda soube aproveitar as oportunidades oferecidas pela globalização e seu núcleo ideológico e político: o Neoliberalismo.
O fast fashion é fruto desse período em que uma releitura do liberalismo clássico conquistava legitimidade no cenário político econômico internacional. A moda rápida adota um modo de produção e de consumo nos quais os produtos são fabricados, consumidos e descartados rapidamente em escala global.
A moda projeta um caleidoscópio do espírito do tempo: comportamento, identidade, opressão, liberdade, gênero, religião, etnia, idade, saberes, nacionalidade, proteção, vulnerabilidade e luta de classes.
Globalização x Internacionalismo
Diferente do internacionalismo, corrente política que advoga maior cooperação econômica e política entre nações em prol do benefício mútuo, a globalização é um fenômeno político, econômico, tecnológico e cultural que desencadeou a ruptura das barreiras territoriais, a internacionalização e a difusão do conhecimento e da informação em nível global, pelo avanço e desenvolvimento dos meios de comunicação.
Na globalização, a sociedade foi incentivada a mitigar valores morais e fazer prevalecer o individualismo e o egocentrismo, em oposição ao princípio da solidariedade. O mundo globalizado trouxe nova roupagem às relações de consumo, apregoou o fetichismo da mercadoria e a reificação (transformar conceitos abstratos em objectos ou mesmo tratar seres humanos como objetos).
No mundo globalizado é difundida a falsa ideia de consumo como forma de ascensão social. O ato de consumir passa a ser encarado como uma válvula de escape das tensões cotidianas, algo que alivia ansiedades, satisfaz desejos e nos torna pessoas aceitáveis pela sociedade. Consumir é um fim em si mesmo, e não um meio de o ser humano alcançar uma satisfação pessoal mediante o usufruto da coisa conquistada.
Fundamentalismo de livre mercado
A doutrina econômica da globalização é o Neoliberalismo, que preconiza a restrição à intervenção estatal na economia e o fundamentalismo de livre-mercado. Retoma a clássica metáfora liberal de Adam Smith de que a “mão invisível” conduziria o capitalismo ao equilíbrio econômico.
O Neoliberalismo se opõe diretamente ao Keynesianismo vigente até a década de 1970, que preconizava a atuação direta do Estado na economia e que essa atuação deveria preocupar-se com a geração do estado de bem-estar social.
A onda Neoliberal nas economias centrais fez ressurgir a defesa da teoria política na qual estão entre as funções do Estado apenas a promoção da segurança, da justiça e do poder de polícia, além da criação de regulamentação necessária para assegurar o cumprimento destas funções.
Neoliberalismo no coração do capitalismo
As ideias neoliberais nasceram logo depois da II Guerra Mundial, na região da Europa e da América do Norte onde imperava o capitalismo. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar e seu propósito era preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro.
A chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, quando todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão, as ideias neoliberais passaram a ganhar terreno.
Abre-alas do neoliberalismo
Em 1979, com a eleição de Margareth Thatcher primeira-ministra da Inglaterra até 1990, teve início o primeiro regime de um país de capitalismo avançado publicamente empenhado em pôr em prática o programa neoliberal.
Em 1980, Ronald Reagan chegou à Presidência dos Estados Unidos e em 1982, Helmut Kohl iniciou o mandato como Chanceler da Alemanha, derrubou o muro de Berlim e unificou o país. Os anos 80 viram o Neoliberalismo alcançar hegemonia como ideologia.
Fast fashion: crueldade com pessoas e planeta
Embora lucrativo para grandes empresas da moda e difundido como estratégia de desenvolvimento pelas economias neoliberais, o fast fashion é uma prática cruel com trabalhadores e meio ambiente. Há muitas violências contra a vida de pessoas e do planeta nas suas práticas.
O desabamento criminoso do Rana Plaza, em Daka, Bangladesh (2013), que deflagrou o movimento Fashion Revolution; as relações trabalhistas precarizadas e normalizadas para a produção de jeans em Toritama (PE); ou a prática de trabalho análogo à escravidão em oficinas de costura escondidas em subsolos de São Paulo (SP).
Os rios mundo afora são tingidos e envenenados com as cores que colorem roupas, os solos são mortos por uso indiscriminado de venenos para cultivo do algodão, as florestas nativas são transformadas em tecidos e resíduos têxteis de todo tipo são descartados em lixões por todo o planeta.
Garoto-propaganda da necropolítica
O fast fashion desfila todas as mazelas causadas pelo Neoliberalismo e é uma espécie de garoto-propaganda da dimensão sociopolítica da doutrina neoliberal: a Necropolítica. Esse conceito foi desenvolvido pelo filósofo Achille Mbembe a partir da definição de Michel Foucault para biopoder: aquele domínio da vida sobre o qual o poder tomou o controle.
A Necropolítica parte da premissa de que negar a humanidade do outro torna qualquer violência possível. Pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer.
Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder.
Corrosão dos direitos trabalhistas
Uma das principais críticas ao neoliberalismo é o processo de desregulamentação da força de trabalho e o enfraquecimento ou aparelhamento das forças sindicais, o que se traduziu em uma diminuição gradativa dos direitos trabalhistas e no padrão médio de vida da classe trabalhadora em todo o mundo.
Um encontro entre a moda e a necropolítica ocorreu nos chamados Tigres Asiáticos, países muito industrializados, mas com mão de obra extremamente barata, fruto da ausência de leis trabalhistas. Os trabalhadores praticamente não contam com férias e os benefícios são limitados.
O neoliberalismo precariza a vida das pessoas para atrair empresas estrangeiras e assegurar o lucro. Dessa região da Ásia saem novos estilos de roupas a baixo custo, em um modelo de negócios que reduz o tempo entre as compras e pressiona ao extremo o consumo. Antes do fast fashion, marcas de roupas lançavam coleções Primavera/Verão e Outono/Inverno; com o advento da moda rápida, passaram a lançar coleções semanais.
Políticas públicas para mudar o cenário da moda
Para alcançar as mudanças urgentes e necessárias na cadeia produtiva da Moda é preciso implementar políticas públicas que possam dar volume e escala para novas formas de produção e consumo.
A experiência em curso com a pandemia da Covid-19 mostra que apenas um Estado humanista, que proteja as pessoas e o meio ambiente, é capaz de equilibrar o progresso e a usura que elimina a dignidade da classe trabalhadora e devora o recursos naturais. A transparência e a responsabilidade social e ambiental da indústria global da moda devem estar na agenda governamental de todos os países
Com os regulamentos e incentivos corretos em vigor e devidamente implementados, os governos podem incentivar uma “corrida pelo primeiro lugar”, na qual pessoas e empresas recebam apoio e incentivo para adotar mentalidades e práticas mais responsáveis e sustentáveis para o mundo pós-pandemia.