Sem comprovação científica de sua eficácia, o medicamento vem sendo endossado pelo presidente Jair Bolsonaro para o tratamento do coronavírus

Médicos da rede pública em regiões do país afirmam estarem sendo pressionados pela crescente recomendação para que prescrevam a cloroquina a pacientes infectados pela Covid-19. Na rede privada, a indicação pelo uso da droga também aumenta e já faz parte de protocolos de alguns planos de saúde.
A pressão pelo uso do medicamento aumentou após a demissão de Nelson Teich do Ministério da Saúde. O ex-ministro deixou a pasta por discordar do presidente Jair Bolsonaro sobre sua prescrição.
Em resposta à influência crescente de médicos alinhados às opiniões do presidente, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) divulgou documento afirmando que a cloroquina não tem eficácia comprovada contra o coronavírus e reforçou com seus profissionais o fato de que eles não são obrigados a prescrever a droga.
A SBMFC representa os médicos que atuam em 47,7 mil equipes de atenção básica no Brasil, 80% delas por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
Eficácia? Não comprovada. Uso? Liberado.
O conflito entre médicos pró e contra o uso da cloroquina se acirrou principalmente nos estados onde os leitos de UTIs na rede pública estão chegando ao fim, deixando a utilização do medicamento como uma das poucas opções.
A recomendação para a utilização da cloroquina cresce apesar da falta de estudos completos que corroborem sua eficácia e minimizem os efeitos colaterais, como arritmias que já levaram pacientes à morte.
Centenas de médicos em todo o país, no entanto, vêm se unindo a favor do uso precoce da cloroquina em manifestos como o “Médicos pela Vida na Covid-19”, uma plataforma que permite e estimula o apoio à prescrição do medicamento via grupos de WhatsApp.
No Recife, outro grupo de médicos autodenominado “Doutores de Verdade” passou a ser investigado em sigilo pelo Conselho Regional de Medicina de Pernambuco por distribuir cloroquina em comunidades pobres.
Segundo a médica de família Rafaela Pacheco, o grupo chegou a promover “caravanas de doações” da droga em atendimentos sem prontuários médicos. “Isso se espalhou também para Caruaru e Petrolina [no interior] sob a alegação do sucesso da experiência no Recife”, diz Pacheco.
Entre as promotoras do grupo está a deputada estadual Clarissa Tércio (PSC-PE), ferrenha apoiadora de Bolsonaro e de manifestações contra o isolamento social. Procurada pela reportagem, ela não respondeu.
Em outros estados, como Piauí e Maranhão, os próprios conselhos regionais de medicina chegam a apontar dosagens específicas para o uso da cloroquina em pacientes com coronavírus.
Em Pernambuco, a rede privada Unimed também incluiu o medicamento no protocolo geral de atendimento de pacientes, medida tomada também em outros estados.
No documento distribuído a seus profissionais, a SBMFC afirma que várias pesquisas e “uma centena de estudos primários permite concluir que as evidências disponíveis no momento não são suficientes para recomendar o uso de hidroxicloroquina, cloroquina, azitromicina ou suas associações no tratamento de Covid-19”.
Segundo Denize Ornelas, diretora da SBMFC, a “polarização política no país invadiu a esfera médica” nessa questão. Ela afirma que a decisão da entidade pela divulgação do documento serve para tentar “blindar” os profissionais que não quiserem prescrever a droga.
Ornelas teme, no entanto, que sem leitos de UTI e com o governo federal recomendando intensamente a cloroquina, muitos pacientes acabem exigindo o medicamento. “Em vez de ajudar, a cloroquina usada precocemente pode causar problemas que não existiam”, diz.
Em entrevista à Folha, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta previu que o uso indiscriminado da cloroquina poderá aumentar o número de mortos pelo coronavírus em casa.
Nesta segunda (18), a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, a Sociedade Brasileira de Infectologia e a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia também divulgaram diretrizes para a Covid-19 contrárias ao uso de rotina de cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina.
Código de Ética
Segundo o artigo 113 do Código de Ética Médica, do Conselho Federal de Medicina, é proibido “divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente”.
Com informações do Estadão.