
Diante da conjuntura política do governo atual, o Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura, 26 de junho, ganha uma importância ainda maior no Brasil de hoje. Neste país em que castigos físicos e tortura sempre foram adotados como método de punição e de interrogatórios, um político que sempre defendeu essas práticas, sem fazer segredo disso, foi eleito presidente da república em 2018.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já fez essa defesa publicamente em programas de TV. Em 1999, quando era deputado federal, ao ser entrevistado no programa Câmera Aberta, da TV Bandeirantes, afirmou que a ditadura militar matou pouca gente. Com expressão de ódio, como um desequilibrado, defendeu o extermínio de “pelo menos 30 mil pessoas, ainda que morram inocentes”.
O fato de Bolsonaro não ter sido cassado por fazer apologia de um crime, e mais tarde ter sido eleito presidente, deve servir de alerta. É um sinal inequívoco de que boa parte da sociedade brasileira aceita a prática da tortura ou, no mínimo, vê a tortura como “um mal necessário”.
Anos depois, no dia 17 de abril de 2016, Bolsonaro voltou a causar espanto quando homenageou publicamente um torturador da ditadura militar, ao declarar seu voto pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff:
“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff” – disse Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Mais uma vez o então deputado do PSC-RJ deixou estarrecidos defensores dos direitos humanos e entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil, e mais uma vez não teve o mandato cassado.
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Brilhante Ustra, já falecido, foi o homem que entre 1970 e 1974 comandou o sinistro Doi-Codi do II Exército de São Paulo, centro de torturas em que a ex-presidente Dilma Rousseff foi supliciada, assim como centenas de outras presas e presos políticos da ditadura. O mesmo Doi-Codi em que foram assassinados, na tortura, o estudante Alexandre Vannucchi Leme, o operário Manoel Fiel Filho e o jornalista Vladimir Herzog. Ustra foi o primeiro militar considerado torturador pela Justiça brasileira, em São Paulo.
A apologia à tortura feita por Bolsonaro tem consequências desastrosas nas polícias, nas Forças Armadas, segmentos em que ele goza de prestígio. O presidente dá o sinal verde para essas instituições já contaminadas, em grande parte, com a ideia de que direitos humanos não passam de uma invenção de defensores de bandidos.
Governo exonera peritos
Desde que assumiu a presidência, Bolsonaro tem mostrado coerência com tudo aquilo que sempre defendeu. Em junho de 2019 publicou o decreto 9.831, que exonerou 11 peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).
O Mecanismo existe desde 2013. Foi criado a partir de um compromisso assumido em 2007 entre o Estado brasileiro e a ONU para investigar violações de direitos humanos em instituições como penitenciárias, abrigos de idosos, hospitais psiquiátricos. O decreto assinado por Bolsonaro, estabelece que novos peritos não remunerados serão nomeados. O ato do governo foi denunciado por entidades de defesa dos direitos humanos como o desmantelamento dos mecanismos de combate à tortura no Brasil.
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Segundo a Agência Pública, de jornalismo investigativo, desde o início do governo Bolsonaro os peritos do Mecanismo de Combate à Tortura vinham denunciando que Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, trabalhava para impedir as apurações. Foi o que teria acontecido quando eles tentaram investigar denúncias de torturas e maus tratos em penitenciárias do Ceará, em fevereiro de 2019. Em abril, os peritos finalmente conseguiram visitar unidades do sistema prisional cearense. Fizeram um relatório com denúncias graves, entre elas presos com mãos e dedos quebrados, dizendo terem sido vítimas de golpes de cassetetes.
Em agosto de 2019, a Justiça Federal do Rio de Janeiro suspendeu a exoneração dos 11 peritos do Mecanismo de Combate à Tortura. Em sua sentença, o juiz Osair Victor de Oliveira Júnior, da 6 Vara Federal Cível, decidiu: “Não é difícil concluir a ilegalidade patente do decreto em tela, uma vez que a destituição dos peritos só poderia se dar nos casos de condenação penal transitada em julgado, ou de processo de disciplina”.
Governo exclui indicadores da violência policial
Em mais um movimento coerente com sua política, em junho de 2020, o governo decidiu excluir do relatório anual dos direitos humanos os indicadores da violência policial de 2019, primeiro ano da gestão de Bolsonaro.
As denúncias de diversos tipos de violências são feitas através do canal telefônico Disque 100, em ligações de todo o Brasil. Os números da violência policial vinham crescendo desde 2015. O Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, de Damares Alves, informou em nota que os dados da violência policial de 2019 foram excluídos porque havia contradições nos registros.
Além disso, um dos compromissos assumidos por Bolsonaro com a classe policial é dar mais garantias aos policiais que matam em serviço, apesar dessa possibilidade legal já existir. A lei dá sustentação para uma morte acontecer, contanto que ela se baseie no artigo 23 do Código Penal, ao ser cometida “em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento do dever legal”. Esse último item enquadra a atividade policial.
História da tortura no Brasil
A tortura deixa marcas para o resto da vida. São inúmeros os casos de pessoas que ficaram desestruturadas, perseguidas pelas sombras de seus algozes. Foi o que aconteceu com frade dominicano Tito de Alencar Lima, preso em 1969, em São Paulo, supliciado por vários dias pela equipe do delegado Sérgio Fleury, outro notório torturador, também já falecido. Mais tarde, exilado na França, Frei Tito não conseguiu se livrar das imagens de seus carrascos e do delegado Fleury. Passou por tratamento psiquiátrico, mas acabou suicidando-se em 1974, aos 28 anos.
A prática da tortura está enraizada no Brasil desde os primeiros anos da colonização. Passou pelo genocídio indígena, atravessou quase 350 anos da escravidão dos povos africanos. Até meados do século passado, castigos físicos como ajoelhar em caroços de milho e o uso da palmatória eram adotados por muitos colégios. A tortura presente hoje nos presídios brasileiros é uma tradição que vem do Brasil Colônia. Em alguns fortes militares tombados pelo patrimônio encontramos celas sem janelas, com o teto tão baixo que o prisioneiro não podia ficar em pé.
Em 1910, 22 anos depois do fim da escravidão, os marinheiros comandados por João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, se uniram na Revolta da Chibata contra os castigos físicos na Marinha, entre eles o açoite. Os marinheiros eram quase todos negros.
Em 1935, durante o governo de Getúlio Vargas, a revolta conhecida como Intentona Comunista foi reprimida com a tortura de prisioneiros. Um deles, o militante comunista alemão Arthur Ewert, conhecido como Harry Berger, foi levado à loucura pelas torturas que sofreu. Nunca mais se recuperou. Sua mulher, Elisa Saborowski, presa com ele, foi estuprada várias vezes – prática adotada por torturadores quando suas vítimas são mulheres.
A ditadura do Estado Novo, em 1937, também esbanjou tortura, sobretudo contra comunistas e sindicalistas, sendo que, de igual modo, a ditadura de 1964 nos impôs um Estado de terror e tortura, cujo relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado em 2014, registra 434 mortos ou desaparecidos, ao lado de muitos depoimentos e comprovação documental de tortura física e psicológica.
Após o fim do regime militar e a Constituição de 1988, a tortura por motivação explicitamente política recuou, mas seguiu nas delegacias e quartéis das Polícias Militares, viaturas, UPPs, contra em sua maioria negros e pobres, especialmente moradores de favelas e bairros populares, em todos os Estados.
A data
O Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura é uma data instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde 1997 porque neste dia foi assinada a Convenção contra a Tortura, em 1987, pelos Estados que a integram. A data tem por objetivo incentivar ações de amparo material e psicológico aos que foram submetidos a essa prática odiosa que é a tortura e também a finalidade de lembrar todos os países da importância de se combater a tortura permanentemente e punir seus autores.
A condenação legal da tortura está presente em diversos Tratados, Convenções, Constituições pelo mundo afora, como aqui no Brasil, no Artigo 5, inciso III, que prevê que ninguém será submetido à tortura nem tratamento degradante. Não faltam dispositivos jurídicos e, inclusive, possibilidades de julgamentos por tribunais internacionais sobre o crime de tortura, e inclusive o crime é imprescritível, pois legalmente o passar do tempo não o isenta, não sendo propriamente, portanto, um problema de natureza jurídica, mas social e político.
Com informações do site Esquerda Online, A Ponte e ABI