
No Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, um caso esquecido de feminicídio no Brasil virou assunto internacional após 23 anos. Nesta quinta-feira (25), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão judiciário autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), declarou o estado brasileiro culpado pela impunidade no assassinato da estudante paraibana Márcia Barbosa de Souza, ocorrida em junho de 1998. O feminicídio, que teve como autor — de acordo com a justiça paraibana —, o então deputado estadual Aércio Pereira.
A Corte responsabilizou o Brasil por “violação de direitos e garantias judiciais, proteção judicial e igualdade perante a lei e por aplicação indevida da imunidade parlamentar em benefício do principal responsável pelo homicídio de Márcia Barbosa”, com 20 anos na época.
Para a entidade, faltou diligência para realizar as investigações necessárias do caso. Também foi considerado “caráter discriminatório por razão de gênero” nessas mesmas investigações, além de violação de direito à integridade pessoal em prejuízo dos familiares da jovem. O caso envolve um ex-deputado estadual da Paraíba, Aércio Pereira de Lima (PFL, antigo nome do DEM).
Um crime entre imunidades e impunidades
Márcia Barbosa de Souza era uma estudante negra de 20 anos, que vivia em situação de pobreza. Ela teria ido a João Pessoa em busca de oportunidade de emprego. De acordo com o processo, na noite de 17 de junho de 1998 encontrou-se com o então deputado em um motel. No dia seguinte, uma testemunha viu alguém tirar um corpo do carro e atirá-lo em terreno baldio na capital paraibana. A jovem foi morta por asfixia.
O delegado do caso apontou dificuldades na investigação devido às prerrogativas de imunidade parlamentar. A ação poderia caminhar apenas com autorização da Assembleia Legislativa da Paraíba, que foi negada duas vezes, após solicitação do Tribunal de Justiça. Assim, o processo só se iniciou em março de 2003, depois que Aércio não foi reeleito.
Com a imunidade parlamentar, o deputado Aércio Pereira, que sempre negou o crime, foi condenado apenas em 2007, a 16 anos de prisão por homicídio e ocultação de cadáver. Recorreu, mas morreu menos de um ano depois da condenação, sem ter passado um único dia na cadeia. O corpo dele foi velado no salão nobre da Assembleia Legislativa da Paraíba (ALPB) e o Governo do Estado, à época, declarou luto oficial de três dias.
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No julgamento, a questão da imunidade foi vista como um empecilho na apuração do crime de feminicídio, dificultando o acesso à Justiça. “A Corte assinalou que a imunidade parlamentar foi idealizada como uma garantia de independência do órgão legislativo, no conjunto de seus integrantes, e que não pode ser concebida como um privilégio pessoal do parlamentar”, afirmam os juízes na sentença.
Para a CIDH, trata-se de um assassinato resultante de um gravíssimo ato de violência contra a mulher, cuja impunidade foi consumada justamente com a morte e com o velório com honras quase dez anos depois do crime.
A nota, inclusive, lembra que no dia do assassinato o corpo da estudante foi jogado em um matagal depois de atos de severa violência e que todo o longo processo afetou a integridade psíquica dos familiares de Márcia Barbosa de Souza.
Reparações
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomenda no processo que o estado brasileiro repare integralmente as violações de direitos humanos ocorridas em seu território e que garanta medidas de atenção à saúde física e mental para a devida reabilitação dos pais da estudante Márcia Barbosa de Souza.
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Recomenda também a reabertura das investigações com o objetivo de esclarecer todos os fatos que cercam o assassinato — visto que até hoje ninguém foi preso —, e averiguar também os retardos processuais que culminaram na impunidade dos responsáveis. A CIDH quer ainda que o Brasil se comprometa a regular as regras sobre imunidade de altos funcionários de estado, incluindo a imunidade parlamentar, a fim de evitar que essas leis protejam casos de violações de direitos humanos.
Por fim, o documento cita a importância do país continuar adotando todas as medidas necessárias para o cumprimento integral da Lei Maria da Penha e dispor de todas as medidas legislativas, administrativas e de políticas públicas para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher no Brasil.