
Esta é a segunda matéria da série especial Experiências Socialistas. No segundo texto, abordamos a relação da China com os demais países do mundo. As relações comerciais do gigante asiático despertam debates sobre o poder exercido pelo país com seus parceiros comerciais.
Se para alguns a China tem uma postura imperialista, para muitos o argumento não passa da utilização incorreta de um conceito em constante evolução. O que não impede, contudo, de haver contradições. Especialmente, com países com menor poder econômico, afinal, o mundo é capitalista.
Mas será que os críticos da China têm razão? As relações seriam assim tão simples para enquadrarem a potência socialista no conceito de imperialismo ou, até, para negar que exerça poder sobre outros países. É o que buscamos responder cuidadosamente com o objetivo de trazer lucidez para um debate tão importante para história atual.
Boa leitura!
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A China é imperialista?
Uma das questões que costumam surgir quando se fala em China é o dilema de o gigante asiático ser ou não ser imperialista. A comparação com os Estados Unidos, que busca constantemente expandir seu domínio sobre os países, faz com que muitos caiam na dualidade simplista de colocar a China no mesmo pacote de embate global.
A principal diferença entre os dois países está nas relações que estabelecem com nações com as quais se relacionam comercialmente.
Enquanto os Estados Unidos buscam restaurar seu domínio mundial decaído, o gigante asiático tenta sustentar seu crescimento capitalista sem confrontos externos, afirma Claudio Katz, em artigo publicado pelo Lavra Palavra.
Katz é um economista argentino, doutor em geografia e professor da Universidade de Buenos Aires. É pesquisador do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia argentino, membro do Instituto de Investigações Econômicas da Argentina, além de integrar o coletivo Economistas de Esquerda daquele país.
Capitalista, mas sem imperialismo
Katz destaca que a China deixou para trás sua antiga condição de país subdesenvolvido e, atualmente, integra o núcleo das economias centrais. É partir desse lugar que o pensador argentino avalia que o gigante asiático “capta grandes fluxos de valor internacional e comanda uma expansão que aproveita os recursos naturais fornecidos pela periferia”. Justamente por essa posição que ocupa na economia mundial, não faz parte do Sul Global.
“Nossa visão compartilha das várias objeções que foram levantadas à identificação da China como um novo imperialismo. Porém, questiona a apresentação do país como um ator meramente interessado na cooperação, inclusive na globalização ou na superação do subdesenvolvimento de seus parceiros”, observa.
‘Comparações inadequadas’
Katz ressalta que as acusações sobre o suposto imperialismo chinês se baseiam na virada iniciada no país nos anos 1980, no pós-maoísmo. O que favoreceu o capitalismo expansivo. Como exemplo, uma suposta subjugação econômica imposta ao continente africano. O que apenas repetiria a “velha opressão europeia”.
“Mas essa caracterização não leva em conta as diferenças significativas entre as duas situações. A China não envia tropas para países africanos – como a França – para validar seus negócios. Sua única base militar, em um nevrálgico cruzeiro comercial (Djibouti), contrasta com o enxame de instalações que os Estados Unidos e a Europa montaram”
Claudio Katz
Katz completa que “o gigante asiático evita se envolver nos explosivos processos políticos do continente negro, e sua participação nas ‘operações de paz da ONU’ não definem um status imperialista. Inúmeros países manifestamente alheios a essa categoria (como o Uruguai) contribuem com tropas para as missões das Nações Unidas”, ressalta.
Pelo menos, até o momento, a China evitou seguir as alternativas bélicas de seus predecessores.
“As analogias erradas também se estendem ao que aconteceu com a União Soviética. Diz-se que a China repete a mesma implantação do capitalismo e a consequente substituição do internacionalismo pelo ‘social-imperialismo’”, critica.
Para Katz, a China não seguiu o exemplo da URSS. “Introduziu limites à restauração econômica capitalista e manteve o regime político que ruiu em seu vizinho”, afirma Katz que observa que a gestão de Xi Jinping foi guiada pela obsessão de evitar a desintegração sofrida pela União Soviética.
“As diferenças, atualmente, se estendem ao terreno militar externo. A nova potência asiática não realizou nenhuma ação semelhante à implantada por Moscou na Síria, Ucrânia ou Geórgia”, ressalta.
Critérios errados
Um livro clássico do marxismo, Imperialismo – estágio superior do capitalismo, de Lenin, auxilia na confusão de conceitos sobre a China, afirma Katz. O motivo é o apego aos conceitos econômicos contidos no livro, como a gravitação de capitais exportados, a magnitude dos monopólios e incidência de grupos financeiros confirmariam o status imperialista chinês.
“Mas essas características econômicas não fornecem parâmetros suficientes para definir a posição internacional da China no século XXI. Certamente, o peso crescente dos monopólios, bancos ou capitais exportados, aumenta as rivalidades e as tensões entre as potências. Porém, esses conflitos comerciais ou financeiros não explicam os confrontos imperiais, nem definem o status específico de cada país na dominação mundial”, afirma.
Nesse quesito, ele compara a China a países como Suíça, Holanda ou Bélgica. Ocupam posição de destaque internacional de produção, câmbio e crédito, mas não quando se trata de imperialismo. O mesmo não se pode dizer de França ou Inglaterra, reconhecidamente imperialistas.
“No caso da China, é muito mais singular. A preeminência dos monopólios em seu território apenas confirma a usual incidência desses conglomerados em qualquer país. O mesmo ocorre com a influência do capital financeiro, que gravita menos do que em outras grandes economias. Ao contrário de seus concorrentes, o gigante asiático galgou posições na globalização, dispensando a financeirização neoliberal. Além disso, não tem nenhuma semelhança com o modelo bancário alemão do início do século XX, estudado por Lênin”, defende Katz.
‘Não vejo a China invadir nenhum país’
Para o professor Elias Jabbour, doutor e mestre em geografia pela USP e especialista no processo de desenvolvimento recente da República Popular da China, a resposta para o dilema é direta.
“Não, de forma alguma. A China não se enquadra em nenhum aspecto dos conceitos do imperialismo. Não vejo a China invadindo um país para depor um governo indesejável”
Elias Jabbour
Ele observa que o conceito de imperialismo evolui ao longo do tempo. O que mesmo assim, não faz com que a China possa ser considerado um país imperialista. Justamente porque o país não ultrapassa os limites comerciais e costuma aceitar as exigências das nações com que negocia.
“A China tem interesse no nosso mercado. Mas não vai forçar o Brasil a nada, nem a atender aos interesses do mercado chinês. A China não transforma sua força econômica em processos políticos, como os americanos fazem no Brasil até hoje, e, quando não dá certo, usam seu poder para forçar a fazer o que eles querem”, explica.
Ele também cita o exemplo da relação comercial estabelecida entre o gigante asiático e o Irã, que vai trocar petróleo por infraestrutura.
“Mais importante que isso é a tecnologia dessa infraestrutura que ficará com o Irã”, defende.
Isso não quer dizer que não existam contradições.
Contradições existem
“Existem contradições nas relações com África. Mas na Etiópia, por exemplo, existem as zonas econômicas comerciais, empregos de melhor qualidade. Ainda assim, não pode ser classificado como imperialista. A China se adequa aos projetos nacionais autônomos. O X da questão é o poder político. Falta sofisticação intelectual para quem fala que a China é imperialista”, afirma.
O jornalista Alberto Rodriguez Garcia, especializado em Oriente Médio, propaganda e terrorismo, também observa que “a China recebe recursos a um bom preço, e em troca, os países da África (principalmente Angola, Nigéria, Quênia, Burundi, África do Sul, Egito, Zâmbia, Malaui e Etiópia) têm a possibilidade de entrar na era da globalização, e viver ares mais de acordo aos padrões do Século 21. E parece que ambas as partes estão satisfeitas com os resultados.”
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Em artigo publicado pela Carta Maior, Garcia observa que, embora as relações sino-africanas sejam baseadas na lógica de mercado, “o fato é que os interesses próprios de cada uma das partes estão sendo satisfeitos, criando uma relação de ‘ganhar-ganhar’, que responde às necessidades das economias emergentes”.
‘É necessário entender o conceito’
Para o historiador, youtuber e colunista do Socialismo Criativo, Jones Manoel, é necessário compreender o imperialismo como “capitalismo monopolista na sua fase mundial, em que os países centrais do capitalismo comandam os processos de acumulação capitalista e garantem a reprodução das condições políticas, ideológicas, culturais, militares, institucionais da reprodução do capital a nível global e do seu próprio lugar enquanto centro do sistema capitalista”.
Ele reforça que mais que exportar capitais, os Estados Unidos organizam o capitalismo mundial.
“A CIA (órgão de inteligência estadunidense) atua nos quatro cantos do mundo combatendo revoluções, projetos de esquerda e revolucionários. A indústria cultural reproduz valores nos quatro cantos do mundo. As bases militares espalhadas pelos quatro cantos do mundo. Não pode pensar no imperialismo apenas como exportar de capitais”
Jones Manoel
Por outro lado, a relação Estado-mercado na China é única no mundo, diz Manoel. “Tem um nível de controle do mercado privado a partir de dupla regulação: aparatos do Estado e do Partido Comunista da China”, observa.
Manoel afirma que a China é praticamente o único país do mundo que não aderiu ao neoliberalismo. Mas para ele, a resposta para a questão da China ser ou não imperialista é “não e sim”.
“A própria existência em si da China, faz um contraponto, embore apoie projetos reacionários e polós de dominação imperialista. Aliada a tudo isso, tem um papel fundamental da reproduçõ da ordem burguesa centro-periferia”
Jones Manoel
China enfraquece imperialismo dos EUA
Jones Manoel observa também que a China também cumpre importante papel no enfraquecimento do imperialismo estadunidense.
“A China vem de um movimento junto com a Rússia e outros países de tentar enfraquecer o dólar para que deixe de ser a moeda global de transações.
Não tem, contudo, uma política de diplomacia revolucionária. Apesar disso, não vê base para comparar Estados Unidos e China.
“Os Estados Unidos têm 800 bases militares no mundo e a China quase nenhuma. Quando se equipara o poder militar em organizar contrarrevolução a nível global, está se protegendo os Estados Unidos. É como comparar o socialismo soviético e o nazismo”, critica.
Com informações do Lavra Palavra, Carta Maior, Revista Continente