
Esta é a primeira matéria da série especial Experiências Socialistas. No primeiro texto, abordamos a ascensão da China como potência. Esse fenômeno chinês levou à criação de diversas narrativas sobre as características do modelo de desenvolvimento do país asiático e seu papel na economia global. Os capitalistas costumam atacar a nação asiática como um país que emprega diversos instrumentos escusos, que fazem com que seus avanços ocorram à custa do bem-estar de outras nações e que o socialismo é uma ameaça para o mundo.
Mas será que os detratores da China têm razão? Eles estão se baseando em algum dado científico? Analisamos cuidadosamente cada afirmação feita sob a luz do senso comum com o objetivo de trazer lucidez para um debate tão importante para história atual.
Boa leitura!
Afinal, a China é socialista?
Especialista no processo de desenvolvimento recente da República Popular da China, Elias Jabbour, graduado, mestre e doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto da Faculdade e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), define a experiência do gigante asiático como Socialismo com características chinesas ou Socialismo de Mercado.
Jabbour acredita que não é possível fazer esta afirmação, por exemplo, de forma dogmática a partir da teoria elaborada por Karl Marx e Frederich Engels em uma série de textos marxianos, incluindo a obra-prima O Capital. Para ele, não dá para definir algo que ainda está em uma “fase de testes” e em um período “embrionário”, visto que o socialismo, como conhecemos hoje, tem aproximadamente 100 anos.
A afirmação do professor faz sentido quando comparamos com outras formas de organização social. Ele ensina que a comuna primitiva teve 5 mil anos de existência; o escravismo, 2 mil anos; o feudalismo, outros 2 mil anos; e o capitalismo, em sua forma histórica, acumula cerca de 600 anos.
Leia também: Elias Jabbour: a reindustrialização do Brasil pode passar pela China
“O socialismo para os chineses é uma sociedade que ainda está em sua fase inicial e que tem ainda muito o que acumular para ser uma alternativa real diante do capitalismo. Estamos ainda no início de uma era de transição”, explicou em um vídeo do canal TV Grabois no Youtube.
Elias pontua que o socialismo foi uma alternativa às contradições do capitalismo, que viu nas relações entre capital e trabalho uma incoerência. Ele considera a forma socialista de organização social “um estágio superior do desenvolvimento humano, marcado por algo que pressupõe abundância material e riqueza. É uma sociedade afeita à ciência em todas as suas matizes”, completou.
Para o especialista, os chineses encaram o socialismo como uma forma possível de criar uma base material para dar condições dignas de vida para 1.4 bilhões de habitantes.
“A experiência chinesa deve ser colocada em um dos marcos dessa transição, em fase embrionária e de testes. Em 70 anos, a China deixou de ser o país mais pobre do mundo para ser o segundo país mais rico. Isso deve ser observado como as consequências de um governo que coloca a ciência em benefício da sociedade e que é transformada em instrumento de governo.”
Elias Jabbour
A afirmação de que a China é socialista a partir do conceito marxiano, de acordo com Jabbour, ainda é cedo para ser feita. “O socialismo é muito novo ainda e deve ser analisado científica e historicamente. Não é possível trabalhar com definições sobre formas históricas que ainda não estão prontas. Socialismo hoje é uma sociedade guiada pela ciência em fase de teste, embrionário, e que tem tudo para dar certo”, concluiu.
Existe democracia na China?
Segundo Jabbour, não só existe, como ela está em fase de desenvolvimento. Para ele, o que existe na China é o que ele chama de democracia não-liberal como, por exemplo, a democracia na base da aldeia em que o governo central não tem tanta interferência nas questões cotidianas.
“Existe uma renovação dos últimos 30 anos da democracia chamada de democracia base da aldeia, que é uma característica milenar na China, dos camponeses se organizarem em suas bases para reivindicar ao governo. Autogestão da administração pública é uma realidade e os comitês de bairro foram fundamentais no enfrentamento à pandemia, por exemplo.”
Elias Jabbour
O professor acredita que não existe um único modelo padrão de sociedade, sistema econômico e muito menos de democracia. Para ele, o que se chama de “democracia” no Ocidente deve ser vista não como uma religião a ser seguida por todos os países. Mas como uma construção histórica baseada nas condições, circunstâncias e características de cada povo e nação.
A China não pratica um tipo de democracia reconhecida pelo Ocidente, mas tem construído uma forma particular de democracia que espelha tanto suas condições histórico-sociais, quanto do sistema socialista em permanente evolução no país desde 1949.
A democracia socialista chinesa é uma democracia construída de “baixo para cima” com poderes cada vez mais concentrados no nível de base e na qual os princípios de livre manifestação e opinião não são influenciados pelo poder econômico.
Democracia não-liberal
Elias ressalta ainda que essa “democracia não-liberal” está sob comando do Partido Comunista da China (PCCh) em conjunto com outras forças vivas da sociedade chinesa, dentre os quais outros oito partidos políticos.
Essa democracia que se desenvolve desde o nível da base (condado, aldeia, distrito, bairro) a cada cinco anos elege seus representantes locais. De forma indireta chega-se aos níveis mais altos da legislatura chinesa, incluindo o Congresso Nacional do Povo (CNP).
Ele explica ainda que o CNP, ao lado do Conselho Consultivo Político do Povo Chinês (CCPPCh), são os dois órgãos legislativos máximos da China. O CCPPCh é uma espécie de “câmara alta” em que as grandes personalidades do país se reúnem para opinar e discutir sobre os rumos do país. A atual legislatura do CNP foi eleita em 2018 com mandato até 2023. O CNP é composto por 2.980 representantes. Desses, 2.094 são membros do PCCh e os 886 dos outros partidos políticos e sem partido que formam a Frente Unida.
Leia também: China reage à exigência dos EUA para que o Brasil desabilite 5G da Huawei para ingressar na Otan
Na China, as duas casas legislativas reúnem-se por apenas 15 dias por ano na capital Pequim. Isso significa que nos outros 350 dias do ano os representantes eleitos ao CNP vivem, militam e trabalham nas bases. Isso garante um controle político do representante por parte da base que não existe no Ocidente. No Ocidente, os deputados são eleitos de forma direta e somente voltam às suas bases nas épocas de eleições.
Quais são os 8 partidos políticos da China?
Ao contrário do que as pessoas acreditam, a China é um país de diversos partidos políticos. Além do Partido Comunista da China, que está no poder atualmente, existem outros partidos com o nome genérico de “partidos democráticos”.
Desde sua fundação, os partidos democráticos colaboraram de diferentes modos com o Partido Comunista. Eles responderam ao chamado do Partido Comunista para a convocação de uma Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPCh).
Segundo a embaixada da China, em setembro de 1949, o Partido Comunista e personalidades democráticas celebraram a I Sessão Plenária da CCPPCh. Durante a sessão, aprovaram o “Programa Comum”, que tinha o caráter de Constituição provisória, e elegeram o Governo Popular Central. Assim nascia a República Popular da China.
A partir da fundação da República Popular, todos os partidos democráticos participam dos assuntos importantes para a vida política do país. Muitas personalidades representativas destes partidos são deputados das assembléias populares e membros junto à Conferência Consultiva Política do Povo Chinês em seus diversos níveis.
Nos comitês permanentes das assembléias populares, nos comitês das conferências consultivas políticas, nos organismos governamentais, nos departamentos econômicos, culturais, educacionais, científicos e tecnológicos dos diversos níveis, muitos militantes têm cargos de dirigentes.
Os partidos democráticos da China não são partidos fora do poder, tampouco são partidos de oposição, mas amigos do Partido Comunista da China. São partidos participantes do poder. Com o Partido Comunista da China mantêm relação de “coexistência duradoura e supervisão mútua, tratamento recíproco com o coração à mão e íntima companhia tanto na glória como na desgraça”.
Saiba quais são os partidos políticos da China:
- Comitê Revolucionário do Partido Komingtang da China (Zhōngguó Guómíndǎng Gémìngwěiyuánhuì – 中国国民党革命委员会)
- Liga Democrática da China (Zhōngguó Mínzhǔ Tóngméng – 中国民主同盟)
- Associação da Construção Democrática da China (Zhōngguó Mínzhǔ Jiànguó Huì – 中国民主建国会)
- Associação de Fomento da Democracia da China (Zhōngguó Mínzhǔ Cùjìn Huì – 中国民主促进会)
- Partido Democrático Camponês e Operário da China (Zhōngguó Nónggōng Mínzhǔ Dǎng – 中国农工民主党)
- Partido Zhi Gong (Zhōngguó Zhi Gōng Dǎng – 中国致公党)
- Sociedade de Três de Setembro da China (Jǐusān Xuéhuì – 九三学会)
- Liga para Democracia e Autonomia de Taiwan (Táiwān Mínzhǔ Zìzhì Tóngméng – 台湾民主自治同盟)
Como o presidente da China é eleito?
Para ser presidente na China é necessário chegar ao topo do Partido Comunista. O partido tem cerca de 92 milhões de integrantes, segundo dados de 2020. Para se qualificar para a liderança, é preciso ter 45 anos ou mais e passar por décadas de seleções e testes.
O presidente é eleito pelo Congresso Nacional do Povo, o maior órgão governamental chinês. As eleições, bem como os eventuais afastamentos de presidentes, são decididas pelo voto da maioria simples.
Se filiar ao gigantesco partido é o primeiro passo. O membro deve ser um profissional que conduz sua carreira com excelência. Há vários tipos de testes e provas para determinar se a pessoa tem capacidade para liderar. Na China, há diferentes níveis de hierarquia. Geralmente, começa-se no nível primário e então é promovido sucessivamente ao nível municipal, de divisão, de departamento, de província e de ministro. Entre os 7 milhões de oficiais de governo, somente um entre 140 mil chegam tão longe. Isso pode levar mais de 20 anos.
Xi Jinping, o atual presidente da China, começou no nível primário, em conselhos comunitários no Oeste do país. Comandou uma divisão, uma cidade e, sucessivamente, as províncias de Fujian, Zheijang e Shanghai. Depois, atuou como vice-presidente e, finalmente, como Secretário-Geral do Partido e presidente. Ele passou por 16 promoções e governou cerca de 150 milhões de pessoas ao longo de mais de 40 anos.
O presidente da China é eleito após passar por uma provas meritocráticas baseadas nos moldes confucianos. Segundo Jabbour, não há a possibilidade de alguém incapaz assumir o posto mais importante do país. Pelo contrário, apenas a pessoa mais capacitada de todas, engajada na política nacional, pode ter tal responsabilidade.
Essa forma de organização da sociedade política chinesa reflete padrões tradicionais institucionalizados até mesmo antes da República Popular da China: hierarquia, meritocracia e coletivismo são princípios fundamentais.
O que é confucionismo?
O Confucionismo é uma corrente filosófica e ética baseada nos ensinamentos de Kung-Fu-Tzu, o Confúcio. Até o início de século XX, por mais de dois mil anos, foi a principal doutrina da China.
O fundamento não é definido como religião, uma vez que sua essência está no entendimento das condutas morais e da ordem social, portanto não se encaixa nas ideologias religiosas geralmente pregadas no ocidente. Além disso, no confucionismo não há igrejas, templos ou qualquer organização em formato de clérigo. Também não existe a concepção de um deus todo poderoso e onipotente, assim como a ideia de vida após a morte.
Confúcio não é visto como profeta, muito menos sacerdote. Ele é tido como um guia espiritual, uma espécie de filósofo que educa seus seguidores para encontrar os caminhos da harmonia.
O senso de humanidade é o principal alicerce do Confucionismo. Acredita- se que todos os seres humanos são bondosos. Portanto, enquanto doutrina, o Confucionismo irá pregar que é necessário conciliar o temperamento humano com as posições políticas e sociais.
Os representantes políticos são tidos como “pais do povo”, porém obedecem a autoridade do céu. Já o arranjo familiar é considerado a base fundamental do ser humano, pois o primeiro contato do sujeito com o senso de disciplina, ordem e consciência política é dentro dela.
Por isso, o casamento é um dos principais rituais da doutrina. Os matrimônios concretizam de vez a formação de uma nova família.
Os representantes políticos são tidos como “pais do povo”, porém obedecem a autoridade do céu. Já o arranjo familiar é considerado a base fundamental do ser humano, pois o primeiro contato do sujeito com o senso de disciplina, ordem e consciência política é dentro dela.
Por isso, o casamento é um dos principais rituais da doutrina. Os matrimônios concretizam de vez a formação de uma nova família.
A Doutrina Confucionista
O Confucionismo acredita na busca pela harmonia da vida e do mundo, o Tao. Sendo assim, os seres humanos são estruturados por quatro dimensões: o eu, a comunidade, a natureza e o céu. Por causa dessas circunstâncias, os seres humanos precisam cultivar seis virtudes fundamentais:
Jen (bondade): a virtude mais elevada das existentes. Conhecida como a lógica do “amor ao próximo”, é a conduta da reciprocidade, do humanitarismo e benevolência.
Chun-Tzu (homem superior): de acordo com Confúcio, o homem atinge a perfeição quando é sábio, humilde, sincero, amável e justo.
Cheng-ming (comportamento adequado): o homem deve cumprir as regras de conduta, isto é, ajustar seu comportamento no dia a dia.
Te (poder e autoridade): o domínio do poder é necessário para se governar, porém deve ser feito de forma equilibrada e justa.
Li (consciência da vontade do céu): os governantes devem proporcionar um confortável padrão de vida ao povo, ofertando educação moral e aos rituais, pois sem estes aspectos o homem não é capaz de cultuar de forma adequada seus ancestrais e deuses do universo.
Wen (artes e música): toda expressão artística é encarada como uma riqueza da sociedade.
Então, por conta dessas virtudes, o Confucionismo ressalta que o homem não tem necessidade de um deus ou ser superior para ajudá-lo a alcançar a paz interior. Ele mesmo tem todas as armas para prosperar sua vida.
Eliminação da pobreza extrema
O crescimento econômico médio acima de 9% nas últimas quatro décadas é um feito sem precedentes na história das grandes nações. Esse crescimento econômico atingiu diretamente a vida de mais de um bilhão de pessoas e proporcionou o maior feito da história humana em séculos: a superação da pobreza extrema em um país de dimensões populacionais especiais.
Jabbour ensina que este crescimento transformou-se em desenvolvimento econômico na medida em que foi combinado com uma planificação de todos os passos do processo. Outro elemento agregado ao debate sobre a eliminação da pobreza extrema na China como o maior feito da história humana está no Socialismo com características chinesas se reproduzir enquanto forma histórica como expressão da transformação da razão humana em instrumento de governo.
A China é uma das únicas sociedades humanas onde a ciência não é somente uma forma de apoio ao governo e empresas. Ela é uma nação guiada pela ciência que perpassa todos os setores.
O país conta com um corpo de pelo menos dois milhões de engenheiros, economistas e profissionais de alto nível voltados à elaboração e execução de grandes projetos. O trabalho deste corpo de especialista foi fundamental no combate à pobreza extrema no país.
Esse foi um ponto fundamental à estratégia chinesa de eliminar a pobreza e garantir trabalho digno para mais de 130 milhões de camponeses que migraram do campo para a cidade.
“De fato, a eliminação da pobreza extrema na China é o maior feito da história da humanidade. Uma vitória do socialismo que tem a ciência seu principal instrumento de governo.”
Elias Jabbour
China, socialismo e Autorreforma
A emergência da China como a segunda maior potência mundial é mencionada na proposta de Autorreforma do PSB como o novo panorama geopolítico que deverá ser considerado pela política externa brasileira.
“A inovação e a criatividade já constam da pauta da sociedade socialista economicamente mais avançada do mundo, a China, que já as incorporou estrategicamente ao seu planejamento.”
Autorreforma PSB
Segundo os socialistas, a relativização das hegemonias do Ocidente para o Oriente e o papel da China nesse novo contexto na América Latina e na África, devem ser aproveitados para a reafirmação dos princípios da autodeterminação dos povos, da soberania das nações, da defesa da paz e dos interesses econômicos, políticos, sociais e ambientais do Brasil.
O Eixo Temático V, que aborda o Socialismo Criativo, tem como objetivo organizar propostas orientadoras para o reordenamento do PSB de forma a apresentar para a sociedade brasileira um partido capaz de responder aos desafios para as novas emergências do século 21.
Segundo as teses em debate pelo PSB, enquanto a criatividade capitalista tem como objetivo principal a ampliação do mercado e lucro, a criatividade socialista deve ter como objetivos a ampliação, na sociedade, dos espaços de liberdade, o atendimento das necessidades básicas e fundamentais, o bem-estar e a felicidade das pessoas.
“O Socialismo Criativo, como um novo conceito, cujos aspectos teóricos e práticos devem ser discutidos e aprofundados no âmbito do PSB, pretende constituir-se em uma visão crítica da Economia Criativa, no que ela tem de concentradora de capital, monopolista e geradora de desigualdade.”
Autorreforma PSB
Com informações do Brasil de Fato, TV Grabois e China Vistos e Consulado Geral da Republica Popular da China no Rio de Janeiro