
Som de tiros e bombas e veículos blindados avançam nas ruas. Homens em trajes militares e armados invadem casas da população, arrombando portões, atirando em pessoas e destruindo pisos e paredes. Com a violência, moradores se assustam e se trancam em suas residências. Em meio ao ataque, postos de saúde fecham as portas, escolas não abrem e milhares de alunos ficam sem aulas.
A descrição poderia ser do conflito no leste europeu, entre a Rússia e a Ucrânia. Cenas como está ‘inundaram’ as redes sociais e a televisão no último mês, sendo reproduzidas em larga escala no Brasil e no mundo, desde a invasão do presidente russo Vladmir Putin ao país vizinho no dia 25 de fevereiro.
Contudo, este conflito descrito ficou longe dos holofotes da grande mídia e não aconteceu na Europa. Aconteceu aqui, no Brasil. Tratava-se de uma operação realizada em 8 das 16 favelas que integram o Complexo da Maré, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, por policiais militares do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), acompanhados da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. Os ataques contra a população não partiam de um exército inimigo, mas das mãos daqueles que deviam protegê-las.
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E é nesta segunda-feira (21), data instituida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, que se faz necessário falar sobre o fenômeno de invisibilização das violências sofridas pelas pessoas negras e marginalizadas. Na Favela da Maré, cidade de Marielle Franco, a população preta e parda representa mais de 62% dos habitantes.
“Estranho é a sociedade não se incomodar”
Ao contrário da toda comoção gerada pelo sofrimentou europeu, a dor dos moradores das comunidades do Rio de Janeiro passou despercebida para a maioria dos brasileiros. As notícias sobre a operação policial na Maré saíram principalmente em meios independentes, como o Maré de Notícias, e nos relatos de moradores que foram às redes sociais denunciar o que estavam vivendo.
Uma delas é a jornalista e doutoranda na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Gizele Martins, autora do livro “Militarização e Censura – A luta por liberdade de expressão na Favela da Maré“, que escreveu:
Já pensou numa simples tarefa como ir comprar um pão na padaria? Então, em dias de operações policiais não temos esse direito. Já pensou se vc tem uma consulta ou cirurgia marcada p um dia como hj? Então, vc não pode sair de casa p isso. Estranho é a sociedade nao se incomodar.
— Gizele Martins (@giz_omartins) February 23, 2022
Diferente da solidariedade prestada nas redes sociais para com a vida dos ucraniaos, Gizele foi rechaçada e até atacada por criticar a violência policial. A falta de compadecimento com o sofrimento da Maré, no mesmo moemnto em que tanta gente se sentiu comovida com o sofrimento em Kiev, infelizmente não a surpreendeu.
“Eu só queria trabalhar, mas não dava para sair de casa. Estava sem internet há cinco dias e ia para o escritório trabalhar, mas quando tem operação a vida para, os postos de saúde fecham e as escolas também. A operação na quarta durou o dia inteiro”, conta Gizele em entrevista o jornal Ponte.
“Os bairros que estão do lado da favela da Maré, as pessoas desses locais não se incomodam com o barulho do tanque, ou do caveirão, ou do helicóptero blindado que passa aqui na favela e atira no chão e nos corpos favelados e negros, não sem comovem. Mas se incomodam com um conflito e uma guerra na Rússia e na Ucrânia”, compara a jornalista.
É uma situação que expõe um contexto de invisibilidade, de criminalização da pobreza e de racismo. “Falamos de novo de racismo e de um Estado brasileiro que é dono das mídias e que faz com que toda uma sociedade aplauda o sangue negro no chão das favelas do Rio de Janeiro”, aponta Gizele. “Eles nos culpabilizam no lugar de problematizar o porquê existem vidas negras sendo assassinadas a cada 23 minutos no Brasil. Não há esse questionamento. Então há, sim, uma diferença de cobertura, de apelo e de comoção”, aponta Gizele.
A jornalista aponta que “países europeus e populações brancas historicamente têm apelo midiático” por serem os que detêm o poder no mundo. “Há sempre uma relevância maior a tudo o que ocorre nesses locais, porque eles detêm todas as forças também, bélica, indústria, midiática, são países colonizadores”, diz. E dá um outro exemplo: “Existe um ataque do estado israelense contra a população palestina há décadas e isso não tem a mesma proporção midiática”.
Essa visão racista, de encarar a violência contra corpos brancos e europeus como algo fora da normalidade, e que por isso deveria gerar horror e comoção, fica evidente nos atos falhos de jornalistas e comentaristas internacionais.
“Este não é um lugar, com todo o respeito, como o Iraque ou o Afeganistão, onde há décadas de conflito. Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia — tenho que escolher essas palavras com cuidado também —, onde você não esperaria que isso acontecesse”, disse o repórter Charlie D’Agata, da CBS News.
“relatively civilized, relatively european” pic.twitter.com/mJll7qluYd
— سامي جِريِس (@samijiries) February 26, 2022
Os números mostram o alcance da violência estatal promovida contra as comunidades fluminenses. Uma operação ocorrida há pouco mais de duas semanas na Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, zona norte, deixou oito pessoas mortas e 5.740 alunos ficaram sem aulas.
Somente no ano passado, mais de 4.600 tiroteios foram registrados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, uma média de 13 por dia, de acordo com dados do Relatório Anual de 2021 do Instituto Fogo Cruzado. Além disso, as operações policiais provocaram a morte de 1.084 vidas, deixaram 1.014 pessoas feridas e 17 crianças e 43 adolescentes baleados na região metropolitana.
Uma verdadeira guerra no Rio de Janeiro
As vítimas têm cor e endereço, mas é no Rio de Janeiro que a escalada de violência policial que reverbera no país contra a população negra deságua. De acordo com o levantamento do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), divulgado em fevereiro deste ano, houve um agravamento do racismo nas abordagens policiais e, por consequência, em todo o ciclo da justiça criminal, no Rio de Janeiro.
A pesquisa intitulada “negro trauma, racismo e abordagem policial na cidade do Rio”, mostra que 63% das abordagens policiais na cidade têm como alvo pessoas negras. Os dados inéditos revelam o caráter racista como centro da atividade policial do estado do Rio de Janeiro.
Segundo o levantamento, um quinto (17%) dessas pessoas já foi abordada pela polícia mais de 10 vezes. Diz ainda que negros correspondem a 68% das pessoas abordadas andando a pé na rua ou na praia, enquanto apenas 25% dos brancos são parados pela polícia nas mesmas circunstâncias.
O estado também detem o maior número absoluto de mortes pelas mãos das forças policiais. Foram 1.245 pessoas mortas pela polícia em 2020, de acordo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para Fransérgio Goulart, coordenador da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), os ataques do estado do Rio de Janeiro contra a população negra e pobre são possíveis de serem comparados a uma verdadeira guerra.
“A violência e as opressões não podem ser hierarquizadas, o que precisamos fomentar é a reflexão do porque a guerra na Ucrânia mobiliza e sensibiliza a sociedade a se posicionar e a guerra aos territórios de favelas, a guerra aos negros e pobres não?”, questiona. “Sei que alguns críticos irão dizer: ‘Mas há guerra no Brasil? Há guerra nas favelas?’ Digo que sim, pois o Estado capitalista racial no Brasil constituiu corpos negros e periféricos como inimigos.”
O ponto em comum entre a guerra vivida na Ucrânia e os conflitos nos territórios das periferias cariocas é o capitalismo, afirma ele. “Lembrando que são contextos totalmente diferentes, mas o que tem de comum é que essas guerras são produzidas pelo imperialismo. Tanto nas favelas quanto na Ucrânia, ou seja, se trata da sociedade capitalista.” Isso demonstra para ele que a violência está banalizada há muito tempo. “Desde sempre pois determinados corpos, como negros e periféricos não são considerados humanos e não sendo humanos, a vida destes não vale nada após muito produzir no sistema capitalista racializado”, critica.