
O presidente Jair Bolsonaro (PL) participou, na manhã desta quarta-feira (16), de uma cerimônia em que colocou flores no Túmulo do Soldado Desconhecido, monumento que homenageia soldados comunistas mortos na Segunda Guerra Mundial.
Não deixa de ser uma pequena ironia para um político que, no seu discurso de posse em 2019, havia prometido trabalhar para “livrar o Brasil do comunismo e socialismo”.
No evento, que é protocolo diplomático para chefes de Estado que visitam a Rússia, Bolsonaro acompanhou militares russos, que carregavam uma coroa de flores com o desenho da bandeira do Brasil. O fato é irônico, já que, no Brasil, o presidente diz que atua para “combater o comunismo”.
O Túmulo do Soldado Desconhecido é uma homenagem a soldados e combatentes que prestaram serviços fora de sua terra natal. A solenidade teve com uma marcha da Guarda de Honra russa e um minuto de silêncio em homenagens aos soldados mortos em operações militares.
O túmulo é um dos pontos altos simbólicos da celebração da vitória da União Soviética, império comunista que durou de 1922 a 1991 e está no centro dos fetiches do bolsonarismo, na Segunda Guerra Mundial (1939-1945, mas que começou para os soviéticos em 1941 e que é chamada no país de Grande Guerra Patriótica).
Sob a construção de 1967 repousam restos mortais dos defensores de Moscou, que seguraram os invasores nazistas a pouco quilômetros da capital. O monumento também traz em seu conjunto 12 pedestais com os nomes das chamadas ‘cidades-herói’, título soviético dado àquelas que resistiram a cercos brutais.
Depois da entrega da coroa de flores em uma espécie de pedestal, o Hino Nacional brasileiro foi executado, na presença de Bolsonaro. No final do evento, todas as autoridades presentes se posicionaram para uma foto.
Os ministros Carlos Alberto França (Relações Exteriores), general Walter Braga Netto (Defesa), general Luiz Eduardo Ramos (Secretária-Geral da Presidência da República) e general Augusto Heleno (Ministro do Gabinete de Segurança Institucional), acompanharam o presidente.
Confusão ideológica
Putin, que recebeu Bolsonaro nesta quarta (16) em meio à grave crise com a Ucrânia e o Ocidente, não é um saudosista do comunismo, mas estabeleceu uma cartilha de louvação aos aspectos heroicos do regime —centrado na experiência da guerra.
A Rússia, maior dos 15 países que compunham a União Soviética, é seu Estado sucessor. Em 2004, Putin inclusive mudou o nome de uma das 12 cidades homenageadas, Volgogrado, à sua denominação nos tempos da guerra.
Foi Stalingrado, ou cidade de Josef Stálin (1878-1953), que homenageava o ditador comunista e foi palco de uma das viradas de maré do conflito, quando os soviéticos derrotaram o Sexto Exército nazista que a havia conquistado.
Sob Putin, é crime tentar contar histórias alternativas à oficial sobre o conflito. Há uma razão emocional também: cerca de 70% das famílias russas perderam algum familiar na guerra, que matou 27 milhões de soviéticos, sendo 9 milhões de militares, quase 40% do total de vítimas.
Mesmo que quisesse, Bolsonaro teria dificuldades de se livrar das lembranças comunistas em Moscou. A cidade é coalhada de reminiscências do período, embora elas tenham diminuído nos 30 anos de vida capitalista.
Seja como for, o mausoléu de Vladimir Lênin (1870-1924), o fundador do regime, segue lá em frente ao Kremlin onde Putin recebeu o brasileiro. As estrelas vermelhas nas torres da fortaleza medieval, remetendo ao símbolo comunista, também.
Placas homenageando figuras do regime e da sociedade estão espalhadas pela cidade, que ainda tem um solitário busto de Karl Marx (1818-83) em frente ao famoso Teatro Bolshoi. Mesmo Lênin, que viu boa parte de suas estátuas cair após 1991, ainda é visto aqui e ali, inclusive com um grande monumento na praça Kaluga.
O anticomunismo de Bolsonaro não difere, em formação, daquele de sua geração de oficiais, moldada na ditadura de 1964. Mas mesmo entre aqueles que permaneceram nas Forças Armadas, enquanto Bolsonaro deixou o Exército como capitão em 1988, não há quem acredite em socialismo ou comunismo nos dias de hoje.
O que há é um entendimento de que a esquerda subsiste de forma ideológica, adotando a defesa de temas alternativos ao socialismo nos campos comportamentais e ambiental, por exemplo. Bolsonaro também ataca nesta frente, mas insiste em que sua claque mantenha viva a ideia de que um espectro ronda o Brasil, para parafrasear o Manifesto Comunista de Marx (1848).
Diplomacia tardia
O ex-ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro, Ernesto Araújo, criticou a viagem do presidente à Rússia. Segundo ele, “o Brasil está mostrando uma preferência pela Rússia. Neutralidade é você visitar os dois que estão em conflito ou nenhum”
Por outro lado, o ex-chanceler petista Celso Amorim defendeu a viagem como uma mostra de independência perante os Estados Unidos. A visita de Bolsonaro já estava agendada desde 2021, e, para o ex-ministro, recuar do encontro seria “sinal de submissão” aos interesses estadunidenses.
Pesquisadores afirmam que, ao contrariar os Estados Unidos e manter viagem oficial à Rússia durante a maior crise de segurança na Europa nas últimas décadas, Bolsonaro tenta mudar sua política externa. O plano, todavia, chega tarde e não é suficiente para reverter o desgaste criado ao longo de seu governo.
O professor de política internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Paulo Velasco, avaliou que o episódio demonstra uma tentativa de “voltar às práticas mais tradicionais da nossa diplomacia” após anos de alinhamento automático com o então presidente Donald Trump.
“Aquele período de convergência absoluta com o governo Trump marca um desvio de rota no que é a tradição do Brasil em termos de política externa. O Brasil, pelo menos desde anos 60, busca assumir uma postura internacional mais autônoma conforme o que entende como sendo o seu interesse nacional”, analisou o pesquisador.
Já o professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), Flávio Rocha de Oliveira, acredita que um dos objetivos da viagem é ter mais atenção da Casa Branca, mas também acredita que é tarde demais para reverter um isolamento cultivado pelo próprio Bolsonaro ao longo dos últimos anos.
“Eu acho que não vai colar. O Bolsonaro pode querer sinalizar isso [que não está isolado], ele vai fazer uma sinalização. Mas o fato é que o próprio presidente, a figura da liderança política do presidente, ela está desprovida de qualquer projeto nacional ou projeto de integração efetiva do Brasil nas relações internacionais”, afirmou Rocha.
Com informações da Folha e do Brasil de Fato