
Mais de 150 atingidos pelo rompimento da barragem da Vale, em Córrego do Feijão, em 2019, participaram do “Encontro de atingidas e atingidos da Bacia do Paraopeba e lago de Três Marias”, que reuniu moradores de 26 comunidades atingidas em Belo Horizonte.
Durante o encontro, realizado neste final de semana, foi lançada uma carta pública à sociedade e às autoridades. No documento, além de prestar solidariedade com as famílias das 272 vítimas fatais do rompimento, os atingidos exigem a punição da Vale e da Tüv Süd pelo crime cometido na Bacia do Rio Paraopeba.
“Repudiamos a lógica da morte da Vale S/A e do sistema da minério- dependência, que faz vítimas no Paraopeba, no Rio Doce e em todo o Brasil, e afirmamos que a vida precisa estar acima do lucro. Exigimos a punição efetiva da Vale S/A, da Tüv Süd e de todas as empresas e pessoas que colocaram e colocam o lucro acima da vida”, afirma a carta.
Falta de participação dos atingidos
Os atingidos também criticam a falta de participação na construção do acordo, firmado entre a mineradora, instituições de Justiça e o governo de estadual, que estabelece os marcos das medidas de reparação ao crime. Na carta, os atingidos exigem protagonizar a definição das propostas e o gerenciamento dos recursos financeiros destinados no Anexo 1.1, que trata sobre os projetos que serão executados nas comunidades. Ao todo, o acordo destina R$ 3 bilhões para essas ações.
“É nosso direito estar em todos os espaços de decisão que definem os projetos e programas de crédito e microcrédito, assim como definindo os critérios de candidatura e escolhendo a entidade gestora que deve obedecer regras de
Lucros e crimes em 25 anos de privatização
Em maior, fez 25 anos que, num leilão realizado em 6 de maio de 1997, o governo brasileiro vendeu a maior parte de suas ações da até então estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). O negócio envolveu, na época, cerca de R$ 3,3 bilhões. Transferiu o controle da companhia do governo para um grupo de empresas privadas e fundos de pensão.
O valor da venda, àquela época, já era motivo de protestos. Sua defasagem ficou mais evidente após a CVRD, depois renomeada Vale, multiplicar seu valor e seu lucro explorando reservas ainda não precificadas.
Levando em conta o preço das ações da Vale vendidas pelo governo no leilão de 1997, a companhia valia, ao todo, R$ 12,5 bilhões naquela época. Em abril, o valor de mercado da mesma companhia era de R$ 452 bilhões, segundo um estudo da consultoria Economatica realizado a pedido do G1 – valorização de mais de 3.500%.
2021: Maior lucro de uma empresa brasileira na história
Só no ano passado, a Vale lucrou R$ 121 bilhões – quase dez vezes o que o governo dizia que ela valia em 1997. O ganho foi o maior já registrado por uma empresa brasileira na história, também segundo a Economatica.
Em 2021, a empresa distribuiu a seus acionistas mais de R$ 73 bilhões em dividendos (participação nos lucros). O governo, que vendeu seu controle da Vale por 2,4% disso, não foi beneficiado.
Hoje, o maior acionista da Vale é o fundo de previdência dos funcionários do Banco do Brasil, o Previ, e fundos de investimento estrangeiros.
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O governo ainda mantém a chamada “golden share”, ou seja: pode vetar mudança da sede e venda de bens, por exemplo. Não tem, entretanto, participação acionária importante.
“Já na época da venda, havia gente estimando que a Vale valia até R$ 100 bilhões. O preço da privatização foi subestimado”, afirmou Luiz Paulo Guimarães, coordenador nacional do Movimento pela Soberania na Mineração (MAM). “Hoje, a empresa tem lucro recorde e o governo não tem retorno com isso.”
“Independentemente do valor, alguém sabe para onde foi esse dinheiro? Ninguém”, complementa a economista e professora da Universidade Federal da Paraná (UFPR), Liana Carleial. “O Estado perdeu receita e poder de investimento a troco de nada.”
Não é só sobre economia
Guimarães, do MAM, disse ainda que a perda do Estado brasileiro com a venda da Vale vai muito além da econômica. Segundo ele, a privatização marcou o fim da participação e controle estatal sobre a mineração no país.
Ele lembra que a Constituição de 1989 proibia que empresas com capital estrangeiro explorassem minérios no Brasil. Isso mudou com a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) em 1995. Essa PEC “preparou o terreno” para a venda da Vale, disse Guimarães. Em 1997 a empresa foi privatizada sob interesses de investidores internacionais.
“A partir da privatização da Vale, o Estado deixou de ser o explorador dos recursos naturais do país. Ele virou um mero concessionário de direitos a empresas”, afirmou.
Essas empresas visam o lucro acima de tudo. Segundo Guimarães, aliás, a Vale é uma das mais dispostas a ignorar direitos na busca por dinheiro.
Em 2012, foi escolhida a pior empresa do mundo em votação promovida por organizações como Greenpeace e Declaração de Berna.
Crimes, mortes e destruição
Em 2015, uma barragem de rejeitos da Samarco Mineração, empresa na qual a Vale tem participação, se rompeu em Mariana (MG), deixando 19 mortos e centenas de desabrigados. O Rio Doce, que passa por ali, foi contaminado.
Já em 2019, rompeu-se uma barragem da própria Vale em Brumadinho (MG). O desabamento matou 265 pessoas, sendo duas mulheres grávidas. Cinco ainda estão desaparecidas.
“É só olhar para essas tragédias e ver que a privatização foi ruim”, afirmou Carleial. “Não é questão econômica que supere isso.”
“A privatização foi um péssimo negócio”, concluiu Guimarães. “A lucratividade hoje impera sobre tudo e os resultados estão aí”.
Procurada pelo Brasil de Fato, a Vale não se pronunciou.
funcionamento criadas por nós”, enfatiza o documento.
Leia carta na íntegra
CARTA ABERTA DAS PESSOAS ATINGIDAS DA BACIA DO PARAOPEBA E LAGO DE TRÊS MARIAS
Belo Horizonte, 12 de junho de 2022
“Um convite baseado na indignação e esperança, porque juntos somos mais fortes”
Nos dias 11 e 12 de junho, estivemos reunidos no Encontro de Atingidas e Atingidos da Bacia do Paraopeba e Lago de Três Marias, representando a diversidade da vida que resiste em todas as comunidades dos 27 municípios atingidos pelo rompimento da barragem da Vale S.A em Brumadinho. Somos atingidas e atingidos, parte de grupos sociais como os familiares de vítimas fatais (AVABRUM), povo indígena Kaxixó, quilombolas, povos e comunidades
tradicionais de religião ancestral de matriz africana, pescadoras e pescadores, ribeirinhas e ribeirinhos, integrantes das comissões de atingidos e atingidas e seus grupos sociais organizados, de movimentos que lutam pelos direitos humanos (RENSER), de atingidos por barragens (MAB), atingidos pela mineração (MAM), sem-terra (MST). Reafirmamos nossa firme unidade em prol da participação informada, efetiva e deliberativa em todas as instâncias e processos da reparação integral dos danos decorrentes do rompimento.
Nos solidarizamos com todas as vidas ceifadas, 272 joias perdidas e com sofrimento continuado das famílias e comunidades, que se agravou ainda mais com as enchentes que novamente trouxe os rejeitos tóxicos de responsabilidade da Vale S/A para dentro das casas de milhares de pessoas. Repudiamos a lógica da morte da Vale S/A e do sistema da minério dependência, que faz vítimas no Paraopeba, no Rio Doce e em todo o Brasil, e, afirmamos que a vida precisa estar acima do lucro. Exigimos a punição efetiva da Vale S/A, da Tüv Süd e de todas as empresas e pessoas que colocaram e colocam o lucro acima da vida.
“A Vale têm um projeto de morte e nós temos um projeto de vida”
Reafirmamos direitos já conquistados desde os marcos legais internacionais, passando pela Constituição Federal até a Política Estadual de Direitos dos Atingidos por Barragens, como a centralidade no sofrimento da vítima e o direito à reparação integral. Com apoio das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs), percorremos diálogos e construções com mais de 2.000 pessoas de nossas comunidades e territórios ao longo de toda bacia, em torno do tema da participação e gestão popular dos recursos do Acordo Judicial firmado com a Vale S.A em 04 de fevereiro de 2021. Nesse Encontro de conhecimentos, que reuniu 153 lideranças, desaguamos no fortalecimento das nossas reivindicações e continuidade do debate.
Denunciamos novamente que o Acordo Judicial foi construído sem a participação das pessoas atingidas. Apesar disso, consideramos uma conquista da luta do povo a destinação de recursos para a reparação dos danos coletivos e difusos, sobretudo pelo seu Anexo I.1 que, em resumo, estabelece como direito de todas as pessoas atingidas a participação efetiva, Com apoio das ATIs, na concepção, formulação, execução, monitoramento e avaliação dos projetos de demandas das comunidades e linhas de crédito e microcrédito no total de R$ 3 bilhões de reais.
No encontro, com objetivo de construir a proposta de governança popular do anexo I.1 e debater o sistema de participação da Bacia do Paraopeba e Lago de Três Marias demandamos:
O RECURSO É NOSSO: Queremos ser protagonistas em todas as decisões de gestão do anexo I.1! É nosso direito estar em todos os espaços de decisão que definam os projetos e programas de crédito e microcrédito, assim como definindo os critérios de candidatura e escolhendo a entidade gestora que deve obedecer regras de funcionamento criadas por nós. Queremos uma entidade que transforme esse recurso na melhoria das nossas comunidades, na recuperação da renda do povo, no retorno do lazer e vivência comunitária, na restauração e desenvolvimento do acesso à educação, cultura, saúde, transporte e outros.
“Queremos construir programas e projetos das comunidades atingidas que reparem os danos que atravessam as nossas vidas e territórios”
AS PROPOSTAS SÃO NOSSAS: A construção do Plano Participativo de Reparação e Desenvolvimento do Anexo I.1 será norteada pelo mapeamento de danos construídos por nós com as assessorias técnicas, considerando as desigualdades históricas e as populações mais vulneráveis nesses territórios. É um retrato do que queremos reparar e desenvolver que vai definir quais os projetos e linhas de microcrédito devem ser feitas, suas formas de execução, E objetivos do plano participativo de reparação e desenvolvimento. Exigimos também que esse processo tenha uma agilidade compatível com a participação das pessoas atingidas garantindo rapidez e atendimento às demandas da população.
“O tempo passa, o sofrimento aumenta”
PARTICIPAÇÃO EM TUDO: Queremos construir um sistema de participação da Bacia para que nós possamos ter protagonismo nas decisões e na fiscalização das medidas que vão garantir a justiça, o desenvolvimento e a recuperação das nossas vidas, dos nossos rios e águas, dos nossos peixes e demais animais, das nossas matas e do nosso chão. Nossa participação precisa acontecer em todo o processo de recuperação socioambiental, na implementação do Programa de Transferência de Renda de forma justa e inclusiva, na efetivação das propostas dos projetos para a Bacia, na Matriz de Danos e Reconhecimento e nos critérios das indenizações individuais integrais.
“Exigimos participar de tudo que esteja voltado para a reparação, para garantir a retomada e melhoria das condições de nossas vidas”
Diante de tantas violações, exigimos justiça e o respeito aos direitos das populações atingidas: a garantia de que a reparação será feita por nós e para nós; por quem vive e conhece os danos e sabe como repará-los, por quem tem lutado há três anos se agarrando à esperança, que resiste por meio da unidade na diversidade.
Apresentaremos uma proposta de gestão e implementação do anexo I.1 que será fruto da luta e união do nosso povo atingido, garantindo que nosso sofrimento, nossas demandas e nosso desejo de desenvolver os nossos territórios sejam atendidos e reparados. Nós temos esse direito e somos as pessoas com mais condições de fazer isso.
Também contamos com o compromisso das Instituições de Justiça em tornar real os direitos firmados no Acordo Judicial: haverá reparação integral e desenvolvimento. A força é do povo. Assumimos aqui nosso engajamento na multiplicação e enraizamento dos debates e demandas deste Encontro em cada território, comunidade, vilarejo e grupo dos quais somos parte.
O RIO AINDA CORRE, O POVO AINDA LUTA!
ASSINAMOS TODOS OS PRESENTES NO ENCONTRO DE ATINGIDOS E ATINGIDAS DA BACIA DO PARAOPEBA E LAGO DE TRÊS MARIAS.
Por Brasil de Fato