
Na esteira da aprovação de uma lei de vanguarda na Austrália, em fevereiro, e do avanço de iniciativas similares nos Estados Unidos, Canadá e União Europeia (UE), pela primeira vez as principais associações de imprensa do continente se uniram para reivindicar a remuneração da produção jornalística pelas plataformas digitais.
Em manifesto assinado, entre outros, pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Associação Mundial de Editores de Notícias (WAN-IFRA), News Media Alliance (Estados Unidos) e, no Brasil, pela Associação Nacional de Jornais (ANJ), os signatários pedem a organizações e países da região a garantia de “condições para remunerações justas e razoáveis” aos meios de comunicação por parte de grandes plataformas, como Google e Facebook.
Um dos principais exemplos é o Código de Negociação Obrigatória para Mídia de Notícias e Plataformas Digitais, criado por lei na Austrália. O modelo australiano é simples: a lei exige que as grandes plataformas compartilhem com os produtores de notícias a receita publicitária gerada pela veiculação de conteúdo jornalístico.
Deve-se chegar a um entendimento, caso contrário, é o Estado quem estabelece o valor a ser pago pelas plataformas aos meios de comunicação. Apesar de críticas e até ameaças de deixar de operar no país, as plataformas acabaram se adaptando à legislação.
Equilíbrio econômico
O manifesto destaca que os meios de comunicação registram recordes de audiência nos últimos tempos, mas a maior parte das receitas de publicidade digital (mais de 80%) fica nas mãos das plataformas, que não produzem conteúdo. Nas regiões onde não há mais mídia local, o drama da desinformação é cada vez mais grave.
“A mensagem fundamental é a de que sem uma modelagem econômica de longo prazo, de sustentabilidade, o jornalismo profissional e independente corre risco de desaparecimento”, disse ao jornal O Globo o presidente da ANJ, Marcelo Rech.
Ele lembrou que mais de 16% da população brasileira não têm acesso a algum tipo de jornalismo independente, o equivalente a 33,7 milhões de pessoas.
“As plataformas têm como efeito colateral a disseminação de desinformação, discursos de ódio. O único que tem a capacidade de fazer a limpeza é o jornalismo profissional e independente”, frisou.
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Rech defendeu, ainda, que a solução para uma problemática que ameaça a sobrevivência dos meios de comunicação seja debatida e resolvida pelo Congresso.
Em 2019, a União Europeia (UE) aprovou uma diretiva sobre regulação de conteúdos, mas cada país deve ter suas próprias legislações. Na Alemanha, na França e na Espanha existem normas mais avançadas. No caso alemão, a regra é focada no combate ao discurso de ódio. Mas, em todos os casos, ainda não se chegou a uma solução nos moldes da lei australiana.
A Comissão e o Parlamento da UE estão discutindo, como informa o manifesto, uma Lei dos Mercados Digitais, para impedir que as grandes plataformas abusem do seu poder de mercado. Nos EUA, a News Media Alliance, signatária do manifesto, faz pressão para que o Congresso dê sinal verde a negociações entre meios de comunicação e plataformas.
‘Núcleo da democracia’
Perguntado sobre quão longe estão os países da região de uma legislação como a australiana, Ricardo Campos, docente assistente na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main, na Alemanha, disse que será “inevitável” caminhar nessa direção:
“Informação de qualidade é o núcleo essencial de qualquer democracia estável e isso passa inexoravelmente pela estruturação de um ambiente jornalístico plural e de qualidade.”
Campos foi o primeiro brasileiro a vencer o prêmio Werner Pünder, pela melhor tese de doutorado de Ciências Humanas. O trabalho dele trata do surgimento e da transformação do Direito Transnacional e de sua relação com a nova economia de plataformas:
“O Estado deve atuar mais como fomentador de condições equilibradas de acordo e menos como um impositor de métricas concretas. Nesse sentido, o caso australiano é interessante de ser replicado em seus moldes gerais, respeitando as tradições jurídicas concretas de cada Estado.”
De acordo com Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), o desafio é encontrar um modelo que remunere o jornalismo profissional, sem criar barreiras ao desenvolvimento de formas de se levar mais informação a um número cada vez maior de pessoas: “Em tempos de bolhas informacionais e fake news, o papel da imprensa no meio digital é cada vez mais relevante.”
Os especialistas avaliam que um modelo de equilíbrio entre meios de comunicação e plataformas digitais é fundamental para a sobrevivência, no longo prazo, do jornalismo profissional. Para Ivar Hartmann, professor associado do Insper, “os modelos de negócio que há 30 anos funcionavam para produção de jornalismo investigativo hoje são inviáveis”:
“Uma imprensa em dificuldades prejudica diretamente a sociedade.”
Com informações do jornal O Globo