
A violência cotidiana em artigo de Hermes Zanetti e Renato de Oliveira*
Não bastassem os quase meio milhão de mortos pelo coronavírus, número que deveremos ultrapassar ainda neste mês graças à espantosa mistura de ignorância, prepotência e insensibilidade de um governo cuja responsabilidade por esta tragédia finalmente começa a ser apurada pela Comissão Parlamentar de Inquérito instalada pelo Senado Federal, fomos agora agredidos pela morte de 24 pessoas numa operação policial numa favela do Rio de Janeiro, por forças que perderam um dos seus integrantes nessa inominável operação.
Como se ainda não bastasse, o próprio vice-presidente da República, em quem todos desejam ver uma voz de equilíbrio e racionalidade neste governo insano, declara, referindo-se aos mortos, que é tudo bandido”, fazendo eco, ao que parece, a dois preconceitos que infelizmente comprometem nossa sociedade. Primeiro, o de considerar que a qualificação de um cidadão como “bandido” prescinde de qualquer julgamento segundo o que estabelece a Lei. Segundo, o de que a condição de bandido retira de um indivíduo a condição de pessoa, podendo portanto ser morto sem maiores problemas morais ou legais.
Insensibilidade nos cobre com o manto da violência
Esta insensibilidade moral, infelizmente – reiteramos! –partilhada por boa parte da nossa sociedade, tem um precedente: a absoluta falta de qualquer política social por parte do Estado brasileiro em praticamente todos os níveis! Há muito o Estado brasileiro desistiu de qualquer iniciativa consistente, séria e responsável para promover o direito à educação, à saúde, ao trabalho e ao bem-estar de milhões de nossos concidadãos entregues à marginalidade, não porque assim o desejam, mas porque não encontram oportunidades no assim chamado “mercado”. Hoje são quase 15 milhões de desempregados, e se somarmos a eles os desalentados que já desistiram de buscar emprego esse número praticamente dobra. Onde irão buscar renda para atender suas necessidades?
A insensibilidade para com a sorte desses milhões de concidadãos é o preço que pagamos por aceitarmos tacitamente que o Estado deixe de cumprir esta sua obrigação básica. E a insensibilidade nos cobre a todos com o manto da violência, da irracionalidade e da brutalidade nas relações sociais. Estamos nos degradando moralmente e perdendo o sentido de sociedade.
É preciso buscar as origens desse círculo infernal! Não somos ruins por sermos brasileiros! Pelo contrário! O mundo já nos admirou pelo nosso caráter, pela nossa cultura, pela nossa sociabilidade! Por que temos governos que viram as costas às necessidades dos nossos concidadãos mais necessitados?
Violência é justificada pela falta de recursos
A resposta mais frequente é a falta de recursos. De fato, se examinarmos os últimos Orçamentos da União, veremos que, afora as manipulações que os tornam em grande parte peças de ficção, os recursos para investimentos em políticas sociais são escassos, estando muito aquém das necessidades da população. No entanto – e isto é o fundamental! – há uma parte do Orçamento que nunca sofreu qualquer manipulação: a parte destinada ao pagamento dos juros e encargos da dívida pública! Ela ocupa quase metade do Orçamento! Ou seja, quase metade dos recursos que o governo arrecada é destinada ao pagamento dos juros e encargos da dívida pública! Hoje são mais de 2 bilhões de reais por dia, que são repassados religiosa e pontualmente para os bancos e os detentores de títulos da dívida pública.
Alguém poderia argumentar que se existe dívida ela tem que ser paga, e que se ela foi contraída foi para gerar algum benefício para a sociedade, para financiar obras públicas e governamentais. Pura ilusão! A maior parte do montante da dívida foi contraída em condições obscuras, muitas vezes por pessoas que sequer tinham autoridade legal para agir em nome da Nação! Além disso, não estamos pagando a dívida: estamos pagando juros e serviços, e frequentemente o próprio governo toma mais empréstimos para pagar esses juros. Em uma palavra, a dívida pública transformou-se num sistema de drenagem dos recursos sociais para o sistema financeiro, estrangulando a capacidade de investimento tanto dos governos quanto da iniciativa privada. Em consequência, o Estado praticamente renuncia à sua autoridade em amplos setores do território e da sociedade, deixando milhões de brasileiros à míngua e à mercê de narcomilícias e justiceiros de ocasião, além de comprometendo as instituições que deveriam dar segurança com a cultura da violência e do desprezo à cidadania.
Assim como o Senado Federal decidiu finalmente resgatar nossos direitos, examinando as responsabilidades governamentais na condução desastrada do combate à pandemia do coronavírus, que nos fará ultrapassar a cifra enlouquecedora de meio milhão de mortos, o Congresso Nacional tem que assumir urgentemente a responsabilidade, determinada pela própria Constituição Federal, de examinar tecnicamente a dívida pública brasileira, através de uma Auditoria Pública e transparente. Só assim recursos hoje desviados para o rentismo e a especulação financeira poderão ser investidos na dignidade dos brasileiros, e deixaremos para trás o pesadelo que estamos vivendo!
* Artigo produzido por Hermes Zaneti, deputado constituinte de 1988 e autor de “O Complô: como o sistema financeiro e seus agentes políticos sequestraram a economia brasileira” e por Renato de Oliveira, sociólogo, professor aposentado da UFRGS e ex-Secretário de Estado da Ciência e Tecnologia do RS.