Ao combinar inovação e cultura, cidades de vários cantos do mundo reinventam-se a partir de sua história e vocação e atraem a nata da criatividade. No Brasil os destaques são São Paulo, Guaramiranga e Paraty. Entenda por que.
O vai e vem dos bondinhos que sobem a colina rodeada de Mata Atlântica não deixa dúvida: há algo diferente acontecendo nas ladeiras de Santa Teresa, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Cerca de 50 ateliês de arte expõem criações locais. Um amontoado de gente acomoda-se nas calçadas à espera de uma mesa nos bares e restaurantes. O movimento também é intenso nos centros culturais, museus e nas lojas de artesanato e design, onde é possível ouvir sotaques e idiomas distintos. Conseguir uma vaga nos hotéis e pousadas torna-se cada vez mais difícil. O frenesi tem nome: Arte de Portas Abertas, um evento anual de abertura sincronizada de ateliês.
Em sua 20ª edição, o evento reuniu, em setembro último, 30 mil pessoas e, desde o início, em 1996, vem contribuindo para revigorar o bairro. Os castelos e casarões franceses do século 18 estão sendo recuperados e aportou por ali a primeira rede de hospedagem domiciliar do Brasil, a Cama e Café. “As 35 casas são gerenciadas pelos próprios donos e solucionaram a escassez de hospedagem no bairro”, diz Leonardo Rangel, diretor da rede.
Ao se tornar uma constelação de atividades econômicas e culturais, o bairro de Santa Teresa pode ser considerado um ambiente criativo, cravado numa cidade, o Rio de Janeiro, que descobre novas vocações e se reinventa como uma cidade criativa. O termo foi cunhado em 1995 pelo pensador britânico Charles Landry, que se debruçou sobre a complexa mistura de elementos que leva gente talentosa a se interessar por esta ou aquela cidade em especial. Autor do livro The Creative City: A Toolkit for Urban Innovators (“Cidades criativas: um kit de ferramentas para inovadores urbanos”), Laundry afirma que essas cidades são autênticas em sua identidade, atraem pessoas de outras regiões e mantêm sua história viva na paisagem e na memória.
“São lugares para trabalhar, morar e se divertir, onde as coisas acontecem e se transformam com incrível dinamismo”, afirma a economista Ana Carla Fonseca, autora de Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável e do livro eletrônico Creative City Perspectives, com 18 autores voluntários de 13 países. “Mas por mais criativo que alguém seja, precisa de estratégias que transformem seu talento em resultados concretos.” É isso que o Rio de Janeiro persegue.
Em 2003, o Sebrae/RJ iniciou um projeto para tornar o bairro de Santa Teresa um destino turístico sustentável. Com aporte de R$ 350 mil por ano, instaurou-se uma rede produtiva de empresários, moradores e artistas que culminou em roteiros que exploram a paisagem natural, arquitetônica, cultural e histórica da região. “Criamos oportunidades de trabalho e renda de acordo com a vocação local”, afirma Heliana Marinho, gerente da área de economia criativa do Sebrae.
Com a proximidade de três grandes eventos – Cúpula da Terra Rio+20, Copa do Mundo e Jogos Olímpicos, o Rio de Janeiro descobre novas vocações. No mês de outubro, o Fórum Internacional Rio Cidade Criativa reuniu empresários, pesquisadores, políticos e artistas para refletir como o perfil e a infraestrutura artístico-cultural do Rio podem se articular com os setores da economia criativa e atrair e reter pessoas talentosas, que buscam lugares com muita oportunidade de trabalho, grande diversidade cultural e alto nível de qualidade de vida.
Criatividade tornou-se um mantra da nossa época. O relatório sobre Economia Criativa das Nações Unidas, publicado em 2008, contabilizou mais de 60 cidades que se autodenominam criativas. O pesquisador americano Richard Florida, autor de The Rise of the Creative Class (“A ascensão da classe criativa”), elaborou um ranking das cidades americanas mais criativas. No topo figura São Francisco, com a combinação de diversidade, inovação e cultura. Quando reduziu em 25% o orçamento das secretarias, a Prefeitura de São Francisco resolveu manter intacta a verba da Comissão de Artes. “Foi uma medida de estímulo ao turismo e à indústria da hospitalidade – restaurantes, hotéis, museus, teatros, os maiores empregadores da cidade”, afirma Luis R. Cancel, diretor de assuntos culturais da comissão. Diante da crise, muitas lojas fecharam e, com vitrines vazias, enfeavam a cidade. Em resposta, 29 artistas preencheram esses espaços com obras e instalações. Mas nos Estados Unidos, cerca de 65% dos profissionais altamente qualificados estão dispostos a escolher uma empresa mais por sua localização do que pela natureza. “Trata-se de uma inversão de valores”, afirma Carol Coletta, presidente da CEOs for Cities, uma organização americana que identifica tendências e oportunidades em cidades que despontam para a criatividade.
Outras metrópoles inspiradoras citadas por Richard Florida são Londres, Nova York, Xangai, Berlim, Amsterdã e Bogotá. A capital britânica dá aula de como atrair gente talentosa. Valoriza a arte e seus criadores com incentivos públicos para moradia a baixo custo, além de locais de criação e exibição. Tem uma agenda extensa de eventos de moda, design, cinema, teatro e música, excelente plano de mobilidade interna e também para outras cidades e áreas verdes. Em Londres, a indústria criativa é o segundo setor da economia. Responde por 25% dos postos de trabalho. Cidade portuária, Amsterdã brilha com seus canais e casas flutuantes, pintores famosos, acervos de arte e regiões livres para sexo e drogas. Barcelona soube se reinventar a partir da Olimpíada de 1992, com pesados investimentos em infraestrutura. Conheça, na próximas páginas, o que torna São Paulo, Paraty e Guaramiranga exemplos brasileiros de cidades criativas.

Com as características das maiores cidades do mundo, São Paulo é luminosa na sua efervescência econômica e cultural e sombria em qualidade de vida e mobilidade. Ainda assim, atrai pessoas que buscam oportunidades e acesso à arte e à cultura. Nenhuma outra cidade brasileira oferece um cardápio tão vasto de salas de cinema, teatros, galerias, restaurantes e espaços culturais para vários tipos de público. O maior evento de cinema, a Mostra Internacional de Cinema, realizada em outubro, reúne mais de 400 títulos exibidos em 20 salas. Na Virada Cultural, promovida pela Secretaria Municipal de Cultura desde 2005, o Centro vira palco de shows e performances por 24 horas.
Mas em São Paulo falta um elemento básico da criatividade: a conexão. Pela magnitude e desarticulação da cidade, a criatividade está distribuída em ilhas. “Existe um caldeirão cultural conhecido, mapeado, que está no circuito, nos roteiros. Mas há uma rede submersa não contemplada na periferia”, afirma Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc/SP. Estrategicamente, a sede administrativa do Sesc transferiu-se da avenida Paulista para o bairro periférico do Belenzinho, onde terá 30 mil m2. Com 12 unidades na capital e cinco em construção, o Sesc/SP reúne programação rica e diversa de esportes, lazer, educação e cultura a preços populares.


O que uma cidade de menos de 5 mil habitantes, cravada na região serrana do Ceará, pode oferecer ao mundo? Um Festival Internacional de Jazz e Blues que atrai turistas interessados em música de qualidade. Em 11 edições, o festival reuniu gente como Stanley Jordan e Jean-Jacques Milteau, além dos brasileiros Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e talentos regionais. Guaramiranga conserva a tradição da música e dos saraus literários deixada pela elite cearense, que fugia do calor do verão da capital, no início do século passado. “Essa vocação estava presente de forma amadora e espontânea. Então, percebemos que o potencial criativo do cearense não estava no Carnaval, mas na qualidade de seus músicos”, diz a antropóloga Rachel Guadelha, sócia-fundadora da produtora Via de Comunicação. “Encontramos no jazz o gênero onde a criatividade fica mais evidente.”
Na primeira edição do festival, em 2000, não havia hotéis ou restaurantes na cidade. Foi preciso convencer os moradores a oferecer suas casas para hospedagem. Hoje Guaramiranga tem pousadas, cafés, galerias e serviços que também atendem a população local. Em 2005, o festival gerou mais de R$ 3 milhões para o município, o equivalente a dez meses de arrecadação de impostos. Hoje, a metade da população que trabalhava na prefeitura transferiu-se para o turismo cultural e ecológico.


Caminhar pelas ruas históricas de Paraty é como voltar no tempo. A bela arquitetura colonial está preservada, não há carros no Centro e o calçamento de paralelepípedos mantém o charme do passado. Há oito anos, entre julho e agosto, a cidade vive uma efervecência literária. Neste ano, moradores e turistas cruzaram nas ruas com as escritoras Isabel Allende e Azar Nafisi, o poeta Ferreira Gullar e o cartunista Robert Crumb. Eles participaram da 8ª Festa Literária Internacional de Paraty. Realizada no período de baixa atividade turística, a Flip ajuda a reduzir os contrastes entre a alta e a baixa temporadas ao atrair cerca de 20 mil pessoas.
A cidade viveu a glória do ouro, ficou um século no isolamento e na década de 60 foi abrigo de intelectuais, para só depois abrir-se ao turismo. “Hoje o que faz da Flip um evento singular no calendário literário mundial é o fato de ter nascido da boa leitura do espaço físico e das necessidades da população. É uma festa ‘para’ a cidade e não ‘da’ cidade”, diz o arquiteto Mauro Munhoz, diretor da Associação Casa Azul, que organiza o evento. A Flip gera cerca de 2 mil empregos indiretos e resgatou uma atividade tradicional, a carpintaria naval, usada na construção dos palcos e pavilhões. Criou 33 pequenas bibliotecas escolares e a inclusão de uma hora de leitura por semana nas escolas municipais.

O pesquisador americano Richard Florida e a economista brasileira Ana Carla Fonseca criaram conceitos inovadores. Fizemos a seguinte pergunta a eles: O que torna uma cidade criativa?
Para Ana Carla Fonseca
>>> Inovação_Científica, cultural e social, como registros de patentes, novos produtos e projetos tecnológicos. Realização de mutirões, ter moedas sociais e gêneros musicais inclusivos.
>>> Conexão_Ligação eficiente entre o local e o global. Mobilidade, espaços públicos vivos e inclusão social e digital.
>>> Cultura_Setores criativos devem gerar impacto na economia geral, como a moda na indústria têxtil. Isso agrega valor e propicia um ambiente inovador. Bem-estar e identidade são valores intrínsecos à cultura. Para Richard Florida
>>> Talento_Medido pela quantidade de patentes, doutores e profissionais de setores tão variados como engenharia, teatro, biotecnologia, educação, arquitetura, moda, cinema.
>>> Tolerância_Avalia quão secular ou individualista é a cultura de um lugar pelos valores tradicionais, como religião e nacionalismo. E individuais, como autoexpressão, democracia, presença de boêmios.
>>> Tecnologia_Mede o nível de projetos de pesquisa e desenvolvimento e de inovação em ciência, cultura e sociedade.


São Francisco lidera o ranking das criativas Nos EUA. Luis Cancel, diretor da Comissão de Artes da cidade, conta por quê
>>> Como São Francisco tornou-se uma cidade criativa?_A cidade atraiu aventureiros de todo o mundo durante a Corrida do Ouro. Eles fizeram fortuna e investiram na construção de teatros, bibliotecas, museus. Em 1906, um grande terremoto seguido de incêndio arrasou a cidade e a elite decidiu reinventar um lugar bonito, ativo, com espaço e valor para a arte e a cultura. Foi criada a Comissão Municipal de Artes, responsável por financiar artistas, projetos e formar uma coleção de arte que conta hoje com 3,5 mil peças.
>>> O que na cidade atrai a classe criativa?_São Francisco tem uma atmosfera que acolhe e encoraja o espírito de comunidade e a liberdade de expressão, e a cidade sabe preservá-los. Também existe estrutura econômica que garante trabalho e moradia, e espaços de criação e exibição das diversas habilidades. São ateliês, galerias, museus, teatros, feiras, festas, cafés, parques e a própria rua.
>>> São Francisco é mais convidativa aos negócios por ser criativa?_Muitas corporações buscam profissionais qualificados que escolheram morar na cidade. Mas a política fiscal afugentou grandes empresas para as cidades vizinhas. Hoje há forte concentração de pequenos empreendimentos ligados à internet e à web 2.0, que atraem novos investimentos.
>>> Quais são os problemas que a cidade enfrenta?_Por ser pequena e atrativa, o preço dos imóveis foi às alturas e a cidade está perdendo parte da classe criativa para as cidades vizinhas. Mas São Francisco ainda é o centro de lançamentos e os artistas participam de sua vida cultural. A expansão da força criativa para as redondezas gerou o sucesso do Vale do Silício. Mas, infelizmente, as riquezas de lá estão realimentando negócios embrionários e não retornando à sociedade. Descobrir como engajar os jovens bilionários da tecnologia é um desafio.