
O procurador-geral da República, Augusto Aras, vai recorrer da decisão da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), que negou arquivar o inquérito sobre o presidente Jair Bolsonaro (PL) no caso da negociação da vacina Covaxin.
O arquivamento havia sido pedido pela PGR, que alegou não ter visto indício de irregularidade na conduta do presidente.
A investigação foi aberta a partir de pedido da CPI da Pandemia, depois que o deputado Luis Miranda (Republicanos-DF) afirmou ter alertado presidente sobre suspeitas na compra da vacina indiana. O inquérito apura se houve prevaricação por parte de Bolsonaro.
Rosa Weber porém afirmou que, diante de ser comunicado sobre um possível crime, o presidente não tem “direito à letargia”. Ela disse ainda que, ao ser informado de suposto crime, o presidente da República tem obrigação de acionar órgãos de controle.
Interlocutores próximos da ministra informaram ao blog que a decisão dela vai no sentido de esperar mais investigações antes de decidir ou não pelo arquivamento.
A PGR entende que a decisão de Rosa Weber contraria o modelo do sistema acusatório no país, e entende que a negativa do arquivamento vai ser derrubada no plenário do STF.
Por que Rosa Weber rejeitou arquivamento?
Na decisão em que recusou um pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, para arquivar um inquérito sobre o presidente Jair Bolsonaro, a ministra Rosa Weber utilizou uma exceção na jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em geral, quando o chefe do Ministério Público Federal pede à Corte o fim de uma investigação contra uma autoridade com foro privilegiado, o entendimento mais comum leva os ministros a acatar o pedido, sem entrar no mérito da suspeita.
“Se o procurador-geral da República requer o arquivamento de inquérito policial, de peças de informação ou de expediente consubstanciador de ‘notitia criminis’, motivado pela ausência de elementos que lhe permitam formar a ‘opinio delicti’, por não vislumbrar a existência de infração penal (ou de elementos que a caracterizem), essa promoção não pode deixar de ser acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, pois, em tal hipótese, o pedido emanado do Chefe do Ministério Público da União é de atendimento irrecusável”, diz, por exemplo, uma decisão do ministro aposentado Celso de Mello, quase sempre citada pelos demais integrantes da Corte quando a PGR apresenta um pedido de arquivamento.
Numa pesquisa no sistema processual do STF, a Gazeta do Povo encontrou várias decisões recentes de ministros – inclusive de Rosa Weber – encerrando as investigações contra senadores e deputados, a pedido da PGR, com esse mesmo fundamento.
No caso de Bolsonaro, Aras pediu o arquivamento do inquérito porque considerou que não é função nem obrigação do presidente da República acionar órgãos de investigação ao saber da ocorrência de uma suposta irregularidade – no caso, uma suposta pressão incomum dentro do Ministério da Saúde, no ano passado, para compra da vacina indiana Covaxin.
Bolsonaro passou a ser investigado pelo suposto cometimento do crime de prevaricação, que consiste em “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, e que tem pena de três meses a um ano de detenção, além de multa.
Assim como Aras, a Polícia Federal também concluiu não ter ocorrido o crime porque, entre as atribuições do presidente da República descritas no artigo 84 da Constituição, não existe o dever de comunicar irregularidades – para o procurador-geral, nesse caso, há “discricionariedade na escolha da conduta a tomar”.
Qual foi a exceção usada por Rosa Weber
Em sua decisão, Rosa Weber reconheceu que, “em regra”, o pedido de arquivamento feito pela PGR é irrecusável por parte de um ministro do STF.
Mas afirmou que isso vale quando, no curso das investigações, a polícia ou o próprio Ministério Público não conseguem juntar provas ou indícios suficientes que possam demonstrar, minimamente, que ocorreu algum crime ou que a autoridade investigada esteja nele envolvida. Ou seja, em casos em que não haveria “base empírica” para uma acusação.
Rosa Weber esclareceu que o arquivamento não é obrigatório – e portanto, pode ser negado pelo STF – em duas situações: quando há prescrição (e nesse caso, cabe ao ministro verificar se, de fato, a passagem do tempo extinguiu a possibilidade de punição) ou quando o magistrado não concorda com a análise feita pelo MP quanto à “tipicidade” da conduta.
Trata-se de examinar se algum ato concreto, comprovado na investigação, enquadra-se ou não na descrição do crime expressa na lei.
E foi por isso que a ministra negou o arquivamento do inquérito de Bolsonaro, por entender, basicamente, que cabia a ele, sim, ao contrário do que entende a PGR, acionar órgãos de investigação ao saber da pressão na Saúde a favor da Covaxin.
Rosa Weber disse que, como chefe da administração pública federal, também recairia sobre Bolsonaro a “função disciplinar para punir integrantes da administração direta”.
“Não há espaço para a inércia ou a liberdade de ‘não agir’ quando em pauta o exercício do controle da legalidade de atos administrativos – ou, mais especificamente, do poder-dever de anular atos contrários ao ordenamento jurídico – e do poder disciplinar em face e desvios funcionais”, escreveu ela na decisão.
A ministra do STF foi além: disse que, pelo próprio texto da Constituição e da lei do impeachment, constitui crime de responsabilidade, punível com a perda do mandato, atentar contra a probidade na administração, ao “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”.
Na decisão, ela disse que o modelo acusatório – estabelecido na Constituição de 1988, e segundo o qual é exclusivo do Ministério Público o papel de formular a acusação e denunciar à Justiça os suspeitos de crimes em ações penais públicas – não significa que o órgão é o “intérprete definitivo das leis penais”.
“Mesmo no domínio penal, compete ao Judiciário em geral e a esta Suprema Corte em particular a última palavra sobre o conteúdo normativo dos preceitos primários de incriminação, máxime quando em pauta, como no caso, discussão sobre o significado e o alcance de cláusulas constitucionais, a exemplo daquelas hospedadas no art. 84 da CF, invocado pelo Ministério Público como fator inibitório à caracterização típica do crime de prevaricação, na presente hipótese”, afirmou a ministra na decisão.
Para sustentar a possibilidade de recusar o arquivamento, Rosa Weber ainda citou um precedente de 1992, do então ministro Sepúlveda Pertence. Na época, ele disse que se o MP entender que um fato não constitui crime “há de o juiz decidir a respeito”.
Em 2007, Gilmar Mendes reafirmou esse entendimento ao dizer que “apenas nas hipóteses de atipicidade da conduta e extinção da punibilidade poderá o tribunal analisar o mérito das alegações trazidas pelo PGR”.
A razão para essa diferenciação é que, quando a PGR pede arquivamento de um inquérito por falta de provas, nada impede que a investigação seja reaberta caso se encontrem novos elementos que possam resgatar a hipótese criminal. Já quando ocorre o arquivamento por atipicidade ou prescrição, acaba a possibilidade de se investigar novamente o caso.