
O presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, está prestes a completar 36 anos, idade mínima para ocupar o cargo de presidente naquele país. Oriundo do movimento estudantil, chega ao poder pela coligação Apruebo Dignidad. Além da eleição, que representa o movimento de volta da esquerda ao poder na América Latina, sua gestão promete mudanças significativas com a equipe mais diversa já vista no país.
São mais mulheres do que homens no comando dos ministérios e mais da metade estudou em escolas públicas. Boric concedeu sua primeira entrevista a um veículo internacional à BBC após vencer as eleições.
“Em um momento em que o mundo muda vertiginosamente, o Chile também precisa mudar e se adaptar. Representamos a força de uma época”, disse Boric à BBC News Mundo.
Para Boric, sua eleição foi possível porque ele e seu grupo político representam “uma energia geracional de transformação”, que aprendeu a valorizar a história que os formam.
“Representamos o ar puro, a juventude, a novidade, mas com consciência da cadeia histórica dos processos. Também representamos que o status quo, ou o conservadorismo, é a pior coisa que pode acontecer ao Chile neste momento.
Num momento em que o mundo está mudando rapidamente, o Chile também precisa mudar e se adaptar. Representamos a força de uma era”, define.
O presidente eleito também atribui à forte presença de mulheres em sua equipe à luta travada pelo feminismo, especialmente, nos últimos anos.
“Que alegria poder falar isso nos dias de hoje. O fato de termos conseguido isso se deve à luta de milhares de mulheres que, por muito tempo, empurraram as barreiras do que era considerado possível, e agora com a última onda feminista ainda mais”
Gabriel Boric
Reconhece, contudo, que não são os primeiros a fazer isso. Ele observa o esforço da ex-presidente Michelle Bachelet durante seu primeiro mandato para um gabinete conjunto, mas foi impedida pelas forças conservadoras.
“Não quero nos apresentar como pioneiros, mas estamos colhendo um legado que vai muito além de nós”, disse.
Sinais das mudanças no Chile
A diversidade na formação dos ministros é outro sinal de mudança que o novo governo quer deixar claro. O escolhido para comandar a Educação, por exemplo, é Marco Antonio Ávila Lavanal, o primeiro professor a ocupar o cargo. Ele se formou em escola pública.
“O Chile é diverso e a diversidade também deve ser expressa em suas instituições e em sua política. Por muito tempo, a elite chilena foi excessivamente consanguínea e não conseguia enxergar além de seus próprios narizes. Como parte de uma elite, acredito que temos o dever e a responsabilidade de sair de nossos círculos de conforto e pensar em um Chile mais abrangente”
Gabriel Boric
A definição de Lavanal para a Educação, afirma Boric, é uma sinalização importante pois, “para além da competência e vocação profissional de Marco Ávila. Creio que foi um gesto necessário para o setor”.
Ele critica o fato de, por muito tempo, o Chile ter tido “acadêmicos sem sala de aula e engenheiros comerciais dirigindo a educação.
“Acredito que era preciso um choque de sala de aula, que é onde as desigualdades e os desafios da experiência educacional se expressam com mais clareza. Isso não pode ser reforma sem sala de aula, sem meninos e meninas, não pode ser reforma sem professores”, destaca.
Sobre a escolha de Izkia Siches, uma médica de 35 anos para o Ministério do Interior, o presidente eleito destacou que a coragem dela vem sendo demonstrada e reconhecida pelo Chile, especialmente, nos momentos mais duros da pandemia da covid-19 no país.
“De opiniões firmes, mas ao mesmo tempo aberta a ouvir e convocar de forma transversal para um bem comum acima dos interesses pessoais. Acho que ela conseguiu dar sentido a uma faculdade de medicina que, por muito tempo, só defendia os interesses de um setor muito pequeno. E a partir daí falou com a sociedade”, pontua sobre a ex-presidente da Faculdade de Medicina da Universidade do Chile.
A cara da sociedade
Os critérios para escolha da equipe foram de paridade – ou com mais mulheres do que homens -, o que reflete a realidade. Assim como a presença de pessoas oriundas do ensino público e que conseguisse sintetizar as gerações, “por um lado a nossa geração que emergiu na vida pública em 2006 e tem crescido a partir de lutas sociais, mas também outra que administrou o Estado por muito tempo e tem experiências valiosas das quais queremos aprender.”
Somado a isso, o gabinete também representa a coligação Apruebo Dignidad, os partidos que apoiaram a candidatura de Boric no segundo turno e com representação parlamentar, além de organizações sociais e pessoas independentes “que mobilizaram e fizeram a diferença com as mulheres”.
“As nomeações, de todos os cargos, eram discutidas em termos de pessoas com os partidos. Eles me deram total liberdade para designar o gabinete, confinados aos critérios que eu tinha para formar nossa equipe de trabalho. E nisso eu aprecio o nível da visão que todas as partes tiveram”
Gabriel Boric
O atual presidente do Banco Central foi o nome escolhido para o Ministério da Fazenda, o que foi bem recebido por empresários e investidores.
Boric argumenta a escolha a partir da experiência de Mario Marcel: na diretoria de orçamento, no Banco Central e também no exterior, no Banco Mundial, na OCDE.
“Essa trajetória histórica é inquestionável, e que é também uma garantia de seriedade para as reformas que temos de impulsionar, que vão ser difíceis e que vão exigir um amplo consenso. Elas precisavam, penso eu, desta garantia de que uma pessoa como Mario Marcel pode dar, além de suas firmes convicções progressistas, já que ele se define como social-democrata”, pondera.
Novo contrato social no Chile
Quando questionado sobre se o fato de as decisões tomadas até o momento, de maneira coletiva, poderia afetar a eficiência de sua gestão, Boric afirma que “há muito mito em torno das assembleias”, e que toda organização requer algum tipo de ordem.
“E o desafio que temos como governo é gerar uma nova ordem. Eu diria que o problema no Chile hoje é que essa ordem não existe. O contrato social foi quebrado. E, do meu ponto de vista, pelas elites. Portanto, para recuperar a ordem são necessárias novas formas e não repetir as mesmas do passado”
Gabriel Boric
O presidente eleito exemplifica a quebra do contrato social quando as riquezas do Chile “aumentaram substancialmente seu capital, enquanto a pobreza e a extrema pobreza cresceram pela primeira vez em décadas”.
Assim como a precariedade e vulnerabilidade da classe média em relação às pessoas ricas: “o lugar onde se nasce continua a determinar de forma muito substantiva ou preditiva o lugar onde se vai morrer.”
“Por isso a promessa de igualdade, além do fato de que sem dúvida houve maior acesso a bens básicos, ampliação de matrículas, redução da pobreza… Acredito que a promessa de igualdade e inclusão não foi cumprida e, portanto, esse pacto social está quebrado e precisamos construir um novo”, propõe.
A “nova ordem” assinalada por Boric se refere às aspirações de uma nova realidade para o país.
“É poder construir uma sociedade colaborativa, na qual alguns de seus membros não sejam abandonados ou discriminados pelas condições de vida em que tiveram que viver, e na qual o Estado também seja capaz de garantir os direitos sociais de forma universal, independentemente de onde você nasceu, a etnia da qual você vem ou a da cor de sua pele. Isso requer reformas estruturais”
Gabriel Boric
Reconhecendo que as mudanças levam tempo para se concretizar, promete “uma virada na lógica neoliberal de cada um por si na sociedade. Isso é algo que temos que acabar”.
“Não podemos passar de “não esperávamos” para “nada aconteceu aqui”. No Chile, ainda existe um mal-estar profundo que ainda não foi resolvido em questões sociais. Há muita precariedade”, afirma.