
O presidente do Chile, Gabriel Boric, tomou posse do cargo no último dia 11 de março. O ex-líder estudantil é o mandatário mais jovem da América Latina, com 36 anos. Boric assumiu o desafio de defender soluções para vários dos problemas mais urgentes que o país vive desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet (1973 -1990). Como presidente, Boric terá que se debruçar sobre a reforma da previdência, lidar com a crise de migração no norte do país e os conflitos envolvendo os indígenas mapuche no sul.
O maior desafio será conciliar um novo pacto social para uma nação fraturada em decorrência de décadas de políticas neoliberais, meta possível com o apoio do processo constituinte que dará vida a uma nova Carta Magna, inclusiva e respeitosa ao direito e a vontade de todos os chilenos.
O gatilho foi acionado pela juventude do sul do país quando, em outubro de 2019, foram às ruas de Santiago do Chile para protestar contra o aumento da tarifa do metrô. No entanto, a natureza da demanda foi evoluindo para expor mais uma vez os problemas urgentes de uma sociedade muito desigual como resultado das práticas neoliberais.
Então o governo do presidente Sebastián Piñera reprimiu duramente o que a multidão defendia como uma reivindicação justa. Quase 30 mortos, milhares de feridos e 460 pessoas com lesões oculares foram resultado dos tiros de borracha ou gás lacrimogêneo pelos Carabineiros e da mobilização do Exército decretada pelo presidente.
Uma das principais demandas dos manifestantes era mudar a atual Constituição, herdada da época da ditadura de Pinochet, e fortalecer o papel do Estado na prestação de serviços básicos. A convocação para a criação de uma Convenção Constituinte foi uma das grandes vitórias deixadas pelos dias de protestos, instância eleita pelo voto popular que atualmente elabora a nova lei fundamental, que deve entrar em vigor após ser submetida a referendo na Câmara no segundo semestre do ano.
Mas Boric sendo o retrato da nova frente socialista que se forma na América Latina, apresenta um novo jeito de governar, afirmando que é preciso ser muito claro sobre as suas convicções e colocá-las em prática de maneira coerente.
“É importante acompanhar as convicções que tenho com a possibilidade de duvidar delas, para melhorar. Às vezes isso significa ir contra o que pode ser mais popular em um determinado momento ou o que as pessoas mais próximas te dizem. Há algo impossível de se medir, que é a intuição em política, quando se tem convicções firmes não se vai ziguezagueando pela vida. Isso te permite ter uma trajetória previsível nesse sentido”, avaliou.
Contra a desigualdade
Como um “respiro de alívio” aos chilenos, Boric afirmou que a prioridade no campo da economia é consolidar a recuperação econômica do Chile de maneira “justa”.
“[Para] que não sejam reproduzidas as desigualdades anteriores. E isso implica dar maiores ferramentas às pequenas empresas para que haja uma desconcentração do mercado”, afirma o presidente eleito do Chile.
De acordo com ele, 87% das vendas no Chile estão concentradas em grandes empresas e apenas 13% em pequenas e médias empresas.
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“Essa é a pedra angular da desigualdade em nosso país. Temos que alcançar a combinação entre crescimento e redistribuição. Uma distribuição mais justa da riqueza. Um não é sustentável sem o outro. Todos cresceram, é verdade, mas alguns muito mais do que outros e isso ampliou a fratura da sociedade chilena”, disse Boric.
Redistribuição de riqueza
Sobre a redistribuição de riqueza, Boric afirmou saber que “a economia continua sofrendo e que o país precisa se reerguer, crescer e distribuir de forma justa os frutos desse crescimento”, acrescentando ainda que “precisamos redistribuir a riqueza produzida por aqueles que habitam nosso país”.
Boric também afirmou que o povo chileno é “protagonista” no processo que culminou em sua eleição à Presidência, destacando que sem as mobilizações que ocorreram no país nos últimos anos “não estaríamos aqui”.
“O povo do Chile é protagonista neste processo. Não estaríamos aqui sem suas mobilizações e quero que saibam que não viemos aqui para ocupar cargos, entreter uns aos outros e gerar distâncias inatingíveis; viemos entregar-nos de corpo e alma ao compromisso de tornar melhor a vida no nosso país”, declarou Boric.
Não violência e diversidade
Como líder estudantil, Boric esteve nas ruas inúmeras vezes. Porém, muitas manifestações terminaram em atos de violência. Ele afirma que as pessoas que “mancharam” os atos são minoria e reafirma que o caminho é o da não violência.
“Mas a violência é um fenômeno que devemos tentar entender para tentar erradicá-la. Se você quer ter certeza de que seguirá havendo violência, basta deixar as coisas como estão”
Gabriel Boric
Ele observa o dever do seu governo de cumprir a ordem pública e a lei e ressalta que “isso não é uma opção”. “O que esperamos é que, através do processo de transformação que vamos iniciar, da convocação e da forma como falamos com povo do Chile, esses setores sejam cada vez mais minoritários”, prevê.
A diversidade na formação dos ministros é outro sinal de mudança que o novo governo quer deixar claro. O escolhido para comandar a Educação, por exemplo, é Marco Antonio Ávila Lavanal, o primeiro professor a ocupar o cargo. Ele se formou em escola pública.
“O Chile é diverso e a diversidade também deve ser expressa em suas instituições e em sua política. Por muito tempo, a elite chilena foi excessivamente consanguínea e não conseguia enxergar além de seus próprios narizes. Como parte de uma elite, acredito que temos o dever e a responsabilidade de sair de nossos círculos de conforto e pensar em um Chile mais abrangente”
Gabriel Boric
A definição de Lavanal para a Educação, afirma Boric, é uma sinalização importante pois, “para além da competência e vocação profissional de Marco Ávila. Creio que foi um gesto necessário para o setor”.
Ele critica o fato de, por muito tempo, o Chile ter tido “acadêmicos sem sala de aula e engenheiros comerciais dirigindo a educação.
“Acredito que era preciso um choque de sala de aula, que é onde as desigualdades e os desafios da experiência educacional se expressam com mais clareza. Isso não pode ser reforma sem sala de aula, sem meninos e meninas, não pode ser reforma sem professores”, destaca.
Sobre a escolha de Izkia Siches, uma médica de 35 anos para o Ministério do Interior, o presidente eleito destacou que a coragem dela vem sendo demonstrada e reconhecida pelo Chile, especialmente, nos momentos mais duros da pandemia da covid-19 no país.
“De opiniões firmes, mas ao mesmo tempo aberta a ouvir e convocar de forma transversal para um bem comum acima dos interesses pessoais. Acho que ela conseguiu dar sentido a uma faculdade de medicina que, por muito tempo, só defendia os interesses de um setor muito pequeno. E a partir daí falou com a sociedade”, pontua sobre a ex-presidente da Faculdade de Medicina da Universidade do Chile.
Paridade ministerial
O alto escalão do governo chileno está sendo formado por maioria de mulheres e de jovens, com média de 35 anos. Os critérios para escolha da equipe foram de paridade – ou com mais mulheres do que homens -, o que reflete a realidade. Assim como a presença de pessoas oriundas do ensino público e que conseguisse sintetizar as gerações, “por um lado a nossa geração que emergiu na vida pública em 2006 e tem crescido a partir de lutas sociais, mas também outra que administrou o Estado por muito tempo e tem experiências valiosas das quais queremos aprender.”
Somado a isso, o gabinete também representa a coligação Apruebo Dignidad, os partidos que apoiaram a candidatura de Boric no segundo turno e com representação parlamentar, além de organizações sociais e pessoas independentes “que mobilizaram e fizeram a diferença com as mulheres”.
“As nomeações, de todos os cargos, eram discutidas em termos de pessoas com os partidos. Eles me deram total liberdade para designar o gabinete, confinados aos critérios que eu tinha para formar nossa equipe de trabalho. E nisso eu aprecio o nível da visão que todas as partes tiveram”
Gabriel Boric
O atual presidente do Banco Central foi o nome escolhido para o Ministério da Fazenda, o que foi bem recebido por empresários e investidores.
Boric argumenta a escolha a partir da experiência de Mario Marcel: na diretoria de orçamento, no Banco Central e também no exterior, no Banco Mundial, na OCDE.
“Essa trajetória histórica é inquestionável, e que é também uma garantia de seriedade para as reformas que temos de impulsionar, que vão ser difíceis e que vão exigir um amplo consenso. Elas precisavam, penso eu, desta garantia de que uma pessoa como Mario Marcel pode dar, além de suas firmes convicções progressistas, já que ele se define como social-democrata”, ponderou.
Reconexão com as audiências
Marco Moreno, diretor da Escola de Governo e Comunicações da Universidade Central, disse que o discurso de Boric deve ser entendido como uma reconexão com as audiências para renovar o apoio que lhe permitiu chegar ao poder.
“Buscou não defraudar as expectativas sobre a ideia de mudança e se move em uma lógica das convicções, mas estas vão acompanhadas de responsabilidade. Buscou pôr a bola no chão porque tudo vai requerer consensos, seu governo não tem maioria parlamentar para aprovar as reformas”, disse ao La Jornada.
O cientista social explica que “não incendiou as expectativas nem foi populista, porque é pragmático, sabe ler os espaços, os ambientes, é um político de cercania que faz micropolítica, consegue conectar. Mas não sabemos se será suficiente para que o país avance, isso veremos nos próximos dias porque “outra coisa é com guitarra”, como dizem, faz-se campanha em verso e se governa em prosa, agora começou a parte mais complicada da política”.
Campo progressista ganha força na América Latina
Apesar do neoliberalismo avançar pelo mundo, a América Latina permanece em efervescência. Tanto 2020 como 2021 foram anos marcados por uma série de protestos e eleições que podem sugerir uma mudança na correlação de forças na região. “Se respiram novos ares na América Latina, fruto da luta dos povos em cada país. O principal inimigo é o sistema neoliberal, no qual vivemos, que nos oprime dia-a-dia, que não nos deixa avançar, que não deixa que nosso povo acesse tudo que necessita”, afirmou Rita Farfán da Federação Democrática Internacional de Mulheres (Fedim).
Também em 2020, o povo boliviano assegurou a volta do Movimento Ao Socialismo (MAS-IPSP), elegendo Luis Arce e David Choquehuanca, um ano depois do golpe de Estado contra Evo Morales e Alvaro Garcia-Linera.
Na Argentina, embora o peronismo tenha assumido novamente o poder com Alberto Fernández e Cristina Fernández de Kirchner, as mulheres não saíram das ruas, garantindo a provação da lei de legalização do aborto com uma maré verde que tomou conta das principais cidades do país.
Ano passado, os paraguaios marcaram a pauta e condenaram gestão de Mário Abdo Benitez durante a pandemia da covid-19. As manifestações não conquistaram o impeachment do representante do Partido Colorado, mas foram suficientes para denunciar a corrupção no Executivo.
Depois do Paraguai, foi a vez da Colômbia, que viveu a maior paralisação nacional da sua história. A população permaneceu dois meses nas ruas, conquistando a suspensão da reforma tributária e da reforma da saúde, propostas pelo presidente Iván Duque, assim como a renúncia de dois ministros.
“Com esse despertar que aconteceu na Colômbia, na luta do povo peruano, na resistência indígena na Bolívia, nas lutas no Brasil ou na Venezuela que resiste o bloqueio estadunidense, assim como Cuba. Estamos trabalhando pela integração dos povos, por essa outra América Latina possível.”, defendeu Carlos Casanueva Troncoso do Partido Comunista do Chile.
Além das manifestações, nas urnas o povo latino-americano voltou a optar pelo campo progressista. Na Venezuela, o chavismo obteve 90% das cadeiras na Assembleia Nacional, em dezembro de 2020. No Chile, além da constituinte, também houve eleições para governadores, nas quais a esquerda saiu vitoriosa.
“É uma grande conquista do povo mobilizado nas ruas contra o modelo neoliberal e contra as heranças políticas fascistas de Augusto Pinochet”, assegurou Troncoso.
No México, o partido governante Movimento de Regeneração Nacional (Morena) consolidou sua presença em vários estados nas maiores eleições da história do país.
De 15 governos que tiveram eleições, o Morena venceu 11, inclusive em lugares onde a direita sempre governou. Isso é algo que deve ser reconhecido, mas é claro que devem seguir trabalhando.
Enquanto no Peru, Pedro Castillo obteve a vitória no resultado das urnas, rompendo com uma tradição de governos conservadores.
“De certa forma ele conseguiu reestruturar essa esquerda que estava muito fragmentada. A mudança mais importante é uma assembleia constituinte, isso é básico para o nosso país, porque temos uma Constituição do fujimorismo, que não representa o povo peruano, que o oprime”, defendeu Rita Farfán.
Esse novo quadro sugere uma nova etapa do progressismo na América Latina. Para alguns analistas, poderíamos estar vivendo a antessala de uma nova “década ganha” – primeiros dez anos do século XXI, marcada por governos progressistas na maioria dos países da região.
“Eu acredito que sim virá uma etapa na qual o povo se levanta. O povo está alçando a sua voz e evidentemente devemos seguir lutando. Qual o problema? É que a direita não nos deixa em paz”, comentou Rita Farfán.
E essa nova etapa tem idade e gênero. É a juventude e as mulheres que protagonizaram os últimos processos de transformação nas nações latino-americanas.
“A juventude chilena e as mulheres tiveram um papel protagonista em todo esse processo. Não somente organizando e liderando essas organizações e protestos, mas também obtendo êxito eleitoral nos últimos processos”, afirmou Carlos Casanueva Troncoso, do PC chileno.
Com informações do Opera Mundi, Diálogos do Sul, Brasil de Fato e Prensa Latina