
O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu novamente o julgamento do ‘Marco Temporal’ das demarcações das terras indígenas (TI), nesta quarta-feira (1º). Representantes de organizações e comunidades indígenas defenderam a inconstitucionalidade da tese e que por isso não pode ser usada como critério para a demarcação de terras. O julgamento será retomado nesta quinta-feira (2).
Pelo ‘Marco Temporal’, indígenas só podem reivindicar terras que já eram ocupadas por eles antes da data de promulgação da Constituição de 1988.
Para a Articulação dos Povos Indígenas (Apib), representada no STF por Luiz Henrique Eloy Amado, a Constituição reconhece o direito originário das populações indígenas à terra.
“Adotar o marco temporal é ignorar todas as violações a que os povos indígenas estão submetidos”, declarou.
Assessor jurídico do Conselho Indigenistas Missionário (Cimi) e advogado do povo Xokleng, Rafael Modesto dos Santos enfatizou o “cenário de insegurança jurídica e violência contra os indígenas”, além de legalizar os “ilícitos antes de 1988”.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, um dos representantes da comunidade indígena Xokleng, argumentou que “a opção da Constituição é por uma posse imemorial”. “Não há tempo na Constituição, não há tempo de posse e ocupação.”
“Não há marco temporal. O marco temporal é nocivo porque corrói, contamina o conceito que a Constituição estabeleceu”, acrescentou.
O julgamento havia sido suspenso na última quinta-feira (26) após a leitura do relatório inicial do ministro Edson Fachin. Socialistas defendem a rejeição da tese que prevê apenas a demarcação de terras ocupadas por indígenas a partir de 1988, sem considerar o processo histórico de remoções forçadas.
A sessão foi encerrada pouco despois das 18h, após 21 das 38 manifestações previstas. Para esta quinta, estão previstas as falas de 17 entidades da Procuradoria-Geral da República e o voto do relator Edson Fachin.
Socialistas contra o Marco Temporal
O líder da Oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ) , afirma esperar que o “STF derrube a tese do ‘marco temporal'”.
O líder da Minoria, deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ), reafirma o direito à terra das comunidades indígenas.
O deputado Camilo Capiberibe (PSB-AP) avalia que a decisão do STF vai decidir se o país segue “na marcha continuada pelo Brasil colônia ou se iremos respeitar o presente e o futuro”.
STF ouviu ‘amigos da Corte’
Como já foi realizada a leitura do relatório, a sessão foi retomada com as sustentações orais das partes envolvidas no processo: da Advocacia-Geral da União (AGU), representando a União; dos advogados da comunidade Xokleng, da TI Ibirama-LaKlãnõ (SC), alvo da ação original; do Instituto do Meio Ambiente do estado de Santa Catarina (IMA), que propôs a ação; além da Procuradoria-Geral da República (PGR), que se manifesta obrigatoriamente em processos envolvendo a temática indígena. AGU, PGR e as partes do processo tiveram, cada uma, 15 minutos de fala.
Em seguida, foi a vez dos chamados amici curiae – “amigos da Corte”, que são pessoas ou organizações que auxiliam as partes mais diretamente interessadas no caso – apresentaram seus argumentos para oferecer subsídios aos ministros e ministras que deverão proferir seus votos na sequência do julgamento.
“Ter iniciado com a leitura do relatório já é um elemento extremamente importante. Foi um relatório minucioso do ministro Edson Fachin, que traz as grandes questões envolvidas na disputa processual neste recurso extraordinário, ou seja, as relações de posse com relação às áreas de ocupação tradicional indígena à luz do artigo 231 da nossa Constituição Federal”, destacou Rafael Modesto.
Teses em disputa
A Corte analisa a reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. O caso recebeu, em 2019, status de “repercussão geral”, o que significa que a decisão servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios.
No centro da disputa há duas teses:
A tese do chamado “marco temporal”, uma tese ruralista que restringe os direitos indígenas. Segundo esta interpretação, considerada inconstitucional, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Essa tese é defendida por empresas e setores econômicos que têm interesse em explorar e se apropriar das terras indígenas.
Leia também: Socialistas mobilizados contra o marco temporal, na pauta do STF desta quarta
Oposta ao marco temporal está a “teoria do indigenato”, consagrada pela Constituição Federal de 1988. De acordo com ela, o direito indígena à terra é “originário”, ou seja, é anterior à formação do próprio Estado brasileiro, independe de uma data específica de comprovação da posse da terra (“marco temporal”) e mesmo do próprio procedimento administrativo de demarcação territorial. Esta tese é defendida pelos povos e organizações indígenas, indigenistas, ambientalistas e de direitos humanos.
“A nossa história não começou em 1988, e as nossas lutas são seculares, isto é, persistem desde que os portugueses e sucessivos invasores europeus aportaram nestas terras para se apossar dos nossos territórios e suas riquezas”, reafirma o movimento indígena em nota divulgada no sábado (28). Os indígenas também asseguram seguir “resistindo, reivindicando respeito pelo nosso modo de ver, ser, pensar, sentir e agir no mundo”.
Mobilização indígena contra o ‘Marco Temporal’
Na semana passada, seis mil indígenas de 176 povos de todas as regiões do país estiveram presentes em Brasília, reunidos no acampamento “Luta pela Vida” para acompanhar o julgamento no STF e lutar em defesa de seus direitos, protestando também contra a agenda anti-indígena do governo Bolsonaro e do Congresso Nacional, na maior mobilização indígena dos últimos 30 anos.
Após o início do julgamento e a previsão de que fosse retomado nesta quarta-feira (1º), os indígenas decidiram manter a mobilização em Brasília e nos territórios. Assim, cerca de mil lideranças indígenas, representando seus povos, permaneceram em Brasília, e o acampamento “Luta pela Vida” foi transferido para um novo local, a Funarte.
No início da tarde desta quarta-feira (1º), os povos indígenas marcharam até a Praça dos Três Poderes, onde acompanharam o julgamento no STF.
Seguindo os protocolos sanitários de combate à Covid-19, o grupo permanecerá até o dia 2 de setembro e posteriormente une forças com a Segunda Marcha das Mulheres Indígenas, que acontece entre os dias 7 e 11 de setembro.
Ativistas do mundo todo assinam manifesto
Mais de 700 ativistas assinam uma carta global chamando a atenção para a questão do marco temporal.
O texto que compõe a carta também tem o objetivo de alertar organismos internacionais para as políticas do governo Bolsonaro em relação aos indígenas, a qual os ativistas classificam como “ecocida”.
Além disso, o objetivo é questionar espaços como a União Europeia e outros que vierem a realizar tratados com o governo do Brasil.
Confira a íntegra Carta Global contra o marco temporal
“Você sabe o que está acontecendo no Brasil neste momento?
O governo Bolsonaro e seus aliados promovem um genocídio e um ecocídio já denunciado ao Tribunal Internacional de Haia.
Apesar das fronteiras nacionais que nos separam, dos privilégios de alguns, que têm sido incrementados por processos históricos, desumanos e predatórios como o colonialismo, somos todos e todas cidadãos e cidadãs globais e nos entendemos como seres humanos que habitam o mesmo planeta.
As consequências da destruição do planeta não são problema de alguns: dos desfavorecidos na lógica e perversões do capital. Essas consequências, quaisquer que sejam, atingirão a todos nós, bem como às nossas gerações futuras. Nunca isso foi tão claro como hoje, quando a crise climática global provoca secas, inundações, furacões, incêndios e consequentemente movimentos migratórios, guerras, fome e falta de água. Esta não é uma previsão fatalista ou apocalíptica, é algo que já está batendo à nossa porta, estejamos no norte ou no sul.
Vivemos claramente uma emergência global e nos aproximamos perigosamente do ponto de não retorno, como nos alertam os cientistas. Por este motivo, todos nós arcaremos com as consequências da destruição de regiões inteiras de diferentes biomas, para entregá-las ao agronegócio, ao extrativismo predatório e à mineração, atividades estas, também financiadas por grandes corporações do norte global.
A política anti-indígenista e anti-ambientalista exercidas em governos como o do Brasil atualmente, visam justamente expropriar os povos originários, que estão em resistência há mais de 500 anos, protegendo grande parte da biodiversidade do planeta. Esta política é um ataque direto à todas as formas de vida, inclusive a nossa, por isto não podemos nos silenciar mais!
Estamos aqui para fazer um alerta a respeito das decisões a serem tomadas pelo Supremo Tribunal Federal e o Congresso do Brasil, pois elas afetarão não só o direito à vida e ao território dos povos indígenas brasileiros, como também impactarão o nosso próprio futuro. Como cidadãos e cidadãs globais, exigimos nosso direito à vida e ao futuro para as próximas gerações.
Esta é uma carta global de solidariedade, não só para com as populações indígenas, que protegem 82% da biodiversidade mundial, mas também para com as crianças e jovens deste planeta. Não importa onde nasçam, herdarão nossa casa comum e com ela as consequências das decisões que agora estão sendo tomadas numa sala do Judiciário no Brasil, onde será votado o chamado “Marco Temporal” e posteriormente no Congresso com os projetos de lei em andamento, no Parlamento Europeu, ou em qualquer lugar onde se trate de uma matéria a ser negociada com um governo que, como o brasileiro, promove abertamente a destruição da vida – a necropolítica.
De acordo com o chamado “Marco Temporal“, o direito dos povos indígenas às terras ancestrais, estaria restrito a uma determinada data (5 de outubro de 1988), desconsiderando o fato de serem estas as populações originárias do continente, ignorando também o histórico de expulsões forçadas desde a invasão européia.
Trata-se de uma decisão que nos próximos dias caberá aos magistrados brasileiros, pressionados por interesses políticos e do capital, e que poderá restringir o direito constitucional dos povos indígenas ao seu território de origem. Uma decisão que vai abrir as portas para mais desapropriacões e violência, como também inevitavelmente para a destruição de 11 milhões de hectares de biomas que contribuem para que o ar que respiramos globalmente, continue sendo respirável. Sem acesso à terra, comunidades indígenas e tradicionais podem ser exterminadas, já que sua existência está intrinsecamente ligada à ela. É por isso que desde onde estamos dizemos “Não ao Marco Temporal!”
Desde muitas partes do mundo, acompanhamos com gratidão a luta dos povos indígenas, os verdadeiros defensores do planeta, porque lutando por seu direito à vida e à terra, eles também lutam pela nossa sobrevivência!”
Com informações do CIMI, Revista Fórum e G1