Charles Siqueira é pernambucano, de adolescência baiana e vive no Rio de Janeiro há três décadas. Graduado em Gestão Ambiental, sua múltipla formação inclui Letras, Dança Contemporânea e Filosofia. Há quase 20 anos dedica-se a melhorar a condição de vida de populações marginalizadas através de seu Instituto Cultural Pólen ou em associação com organizações como Brazil Foundation, REDEH – Rede de Desenvolvimento Humano e CESeC – Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.
Conselheiro e membro de instituições nacionais e internacionais como LEAD/ONU; ABDL- Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Lideranças; Universidade das Quebradas (UFRJ); Parque Nacional da Tijuca e Observatório da Intervenção, entre outras. Seu trabalho, prioritariamente focado em Economia Criativa Inclusiva, vem fazendo diferença na qualidade de vida de grandes contingentes populacionais no Rio de Janeiro, sendo reconhecido cada vez mais no Brasil e no Exterior.
por Charles Siqueira em 06/12/2018.
Vamos falar sobre Negros e Economia Criativa?
No mês que fechou celebramos mais um Dia da Consciência Negra: além do feriado em grandes capitais do Brasil, há algo a se comemorar?
No ano em que se completa 130 anos da Abolição da Escravatura no Brasil, poderia aqui tratar da enorme dívida que temos com a dezena de milhões de negros trazidos à força para esse país e que moldaram a nossa formação cultural ao longo de séculos, num pais ainda longe de se considerar uma pátria segura para seus descendentes (quantos de nós?). Mas no Brasil que não se declara racista, não enxerga a sua própria digital na condição desumana a que submetemos uma maioria populacional e agora está legitimado politicamente a dizer que denunciar aquela desigualdade histórica é “vitimismo”, não perderei tempo buscando dados para contrapor a preconceituosos aquilo que não se deseja enxergar. Ao invés de lamentar o débito, prefiro tratar do investimento. Contra fragilidade, ofereço potência e trago hoje uma personagem – que conheci recentemente mapeando iniciativas nacionais para o British Council – cuja iniciativa prospera velozmente e ganha corpo crítico, volume e força no Brasil da Economia Criativa para Inclusão Social.
Conheçam um dos maiores exemplos de iniciativas afirmativas e solidárias do poder negro como cultura, diversidade e economia: com vocês, a FEIRA PRETA e seu AFROLAB.
“Meu nome é Adriana Barbosa e coordeno o Instituto Feira Preta, um negócio social que comecei a empreender há 17 anos na cidade de São Paulo, junto com uma amiga. A gente vinha de um período de falta de grana, de ‘sevirologia’ e começamos montando um brechó de troca de coisas entre as pessoas. Em 2002, a cidade de São Paulo tinha uma efervescência de música negra como na Vila Madalena, onde nos atraía uma forte cena de Black Music.A gente ia pra lá e falava: ‘Caramba! A gente tá aqui produzindo e consumindo; mas não é detentora dessa circulação monetária!’. Ali tinha DJs, Hostess, Técnicos de bandas. Negros consumindo e trabalhando, mas no final da noite só homens brancos contavam a grana. E nos perguntávamos: ‘Porque a gente também não é proprietário desse dinheiro? Como nos ficávamos esperando o ônibus pra voltar pra casa, víamos a sangria, o fechamento dos caixas e aquilo me deixava intrigada.
Aí numa daquelas feiras de rua onde fazíamos as trocas teve um arrastão, perdemos muito e ao repensar a retomada vimos que não valia mais ficar nessa de segurar a onda, ter apenas dinheiro pra procurar emprego no dia seguinte: a gente queria ter mais qualidade de vida! Foi dai que surgiu a FEIRA PRETA, em 2002, na Praça Benedito Calixto, estabelecendo um espaço para a produção da população negra, em todas as linguagens artísticas, de produtos ou serviços, mas na perspectiva de ser proprietário dessa história. Do ponto de vista da criação, mas também do consumo e das finanças por trás dela. A gente criou uma feira onde pudesse colocar o negro não mais como intermediário: a gente mesmo produzia, fazia circular o produto e recebia o dinheiro da nossa criatividade e do esforço produtivo.
A Feira cresceu e virou a maior feira negra da América Latina. Mas o começo era só dificuldade; já no segundo ano tivemos uma grande mudança. Fazíamos inicialmente numa área nobre de São Paulo – o bairro de Pinheiros – mas logo veio um abaixo-assinado e a gente teve que peregrinar por vários espaços até chegar no Anhembi, um dos maiores espaços de exposição da capital. Quando você chega num lugar como aquele, com contrato, etc, há uma série de condicionantes para comercialização. A lógica de capital aplicada ali é bem distinta da dinâmica de uma feira de rua, especialmente quanto à obrigatoriedade de emissão de notas fiscais e a maior parte dos nossos expositores é do universo informal. Então tivemos que seguir na direção de instituir todo um processo de formação daqueles empreendedores para estarem dentro daqueles espaços. Naturalmente a FEIRA PRETA seguiu nesse processo de articular quatro pilares: a criação, a produção, a distribuição e o consumo. Então, para responder àquela questão surgiu o AFROLAB, em 2011.
A FEIRA PRETA começou com duas mulheres pretas tentando sobreviver e dar conta da vida. Eu venho de uma família matriarcal, conduzida por mulheres negras: minha bisavó, minha avó, minha mãe, eu e minha filha. Só mulheres! Toda vez que faltava grana na minha casa a minha bisavó – que era muito inventiva – criava das suas: fazia coxinhas, depois passou a cozinhar, vender marmitex. Depois abriu nossa casa e a transformou num restaurante, envolvendo toda a família nesse processo de produção. Então, para mim, a mulher negra empreende há mais de 130 anos, pré-Abolição. Uma coisa que fez a população negra sobreviver foi empreender. Agente tem desde aquelas mulheres da Bahia que vendiam comida no tabuleiro (e muitas delas até compravam alforria, nessa prática de vender comida na cabeça!). Sem frequentar nenhum processo de educação ou conhecimento formal, sem nada. Elas precificavam o produto, seguravam o tabuleiro na cabeça, tinham estratégias de comunicação, todo um sistema de metodologias complexas. Aí você dá um salto nessas treze décadas e chega nas influenciadoras digitais, que vendem conteúdos das grandes marcas; que fizeram a transição da revolução capilar, mudando o mercado de cosméticos no Brasil. Então na mulher negra eu vejo a mola propulsora desse grande movimento que a gente tem hoje de empreendedorismo. Economia Criativa pra mim vem dessas mulheres não da Europa, dos Estados Unidos. Quem fez essa revolução no Brasil foram as mulheres negras; eles de fora é que hackearam a forma delas criarem, circularem e escoarem essa produção; então eu sou cria delas.
Em 17 anos, agente reuniu mais de 150 mil pessoas em todas as edições. Só no ano passado foram mais de 27 mil pessoas, com uma média de 100 empreendedores por edição, então são mais de mil quepassaram pela FEIRA PRETA e por isso hoje viajamos por outros estados, como o Rio de Janeiro, o Maranhão, o Distrito Federal. Começou bem pequena e hoje tem números expressivos e se transformou nessagrande rede de empreendedores que conecta grandes histórias; conecta as criatividades, as inventividades da população negra, sobretudo de jovens e mulheres.Isso mostra como temos uma economia negra hoje. Na verdade, sempre tivemos mas isso nunca ficou tão evidente e quantificável. A gente tem uma população autodeclarada negra que define a maioria brasileira. À medida que essas pessoas assim se autodeclaram vão procurar produtos e serviços que se adequem às suas especificidades e quando isso acontece aumenta o número de empreendedores, principalmente aqueles que criam produtos afrocentrados para atender àquela demanda. Então o mercado vem mudando nos últimos 20 anos, olhando pra essa estética negra que começa a criar produtos, serviços, uma infinidade de relações artístico-culturais e desenvolve da intelectualidade à indústria para atender a demanda de uma população que se posiciona num corpo que é político: a roupa que veste é política em suas estampas, o cabelo crespo assumido é político. Enfim, o posicionamento é de valorização da identidade negra, então hoje a gente tem uma economia que já passa por essas questões. Nunca se falou tanto em diversidade como se tem falado agora e economia negra hoje traz embutido o conceito de black money, uma ideia americana de fazer circular dinheiro entre os negros. E segue uma ampliação em nível macro, de mercado: Como é que esses signos são decodificados pelo grande capital, pelas empresas, pela grande indústria? Um bom exemplo é a questão da transição capilar: a gente nunca desejou tanto cabelo crespo, cacheado, ondulado, de várias texturas que vem da questão do ‘corpo político’. O mercado se apropria disso, transforma em produto e se beneficia disso. A FEIRA PRETA vem pra refletir o que é esse grande capital e como pode ser protagonista um empreendedor que sempre teve à margem. Importante salientar que a maioria dos empreendedores na categoria MEI (Microempreendedores Individuais)é composta por mulheres; e essa parcela, maciçamente negra. Mulheres que não conseguem se estabelecer no mercado formal de trabalho com a justa valorização de sua mão-de-obra e poder criativo eque vão empreender iniciando sempre na mesma lógica da “se virologia”, como a da minha família. E aí o que a FEIRA PRETA faz é estabelecer um caminho de qualidade pra essa construção de sucesso; pra elas serem sustentáveis, acessarem esse grande mercado em posição de protagonismo.
Para isso foi fundamental a criação do AFROLAB, baseado numa pergunta simples: como fazer o empreendedor da ‘se virologia’ se qualificar para um mercado que está se diversificando mas que mantém a exigência de qualidade? Começamos trazendo os contextos de inovação como workshops e em 2017 demos um salto em parceria com a Aliança Empreendedora, aplicando uma metodologia que olha para a base da pirâmide social. Analisando os dados dos 17 anos de existência da Feira e sua especialização no empreendedor negro, decidimos criar uma metodologia própria que leve em consideração nossas especificidades e a trajetória até aqui.Nosso método olha para a cadeia da produção ao consumo mas traz como premissas as questões dos saberes ancestrais, do conhecimento e valorização de metodologias que não estão no campo acadêmico; são as táticas da minha avó, minha bisavó. Reconhecer essas especificidades do empreendedor e trabalhar com elas na perspectiva de luz, valorização e oportunidades para outros. Criar um espaço de apoio que também é fortalecimento de uma identidade desvalorizada historicamente. É dizer: ‘cara, vamos lá! O que você está achando que é um problema, pode trazer uma oportunidade que podemos explorar e replicar por outros. Avançar pela técnica que acredita ser unicamente sua, mas não é. Na verdade é de muita gente e traz oportunidades para muitos. Vamos transformar isso numa receita familiar’.
Na metodologia do AFROLAB usamos a analogia do rio: um fluxo da nascente, com afluentes e que deságua no mar. Então são seis dias de imersão em que a gente convida no primeiro dia a mergulhar nesse rio, com a questão do autoconhecimento e seguir um trajeto até encontrar o grande mar/mercado da FEIRA PRETA. E os afluentes são justamente aqueles braços da cadeia econômica: criação, produção, distribuição e consumo. Mais do que produtos ou serviços a questão é de qualificação a priori do que ela é, de sua identidade, da busca de protagonismo na sua própria história. O produto principal é a sua própria trajetória.Então percorremos a cidade, vamos às exposições, restaurantes, etc. Fazemos uma imersão de 360 graus que passa também pelos cinco sentidos. Depois dessa sensibilização a gente convida à co-criação: ‘Vamos juntos desenvolver algo?’ Para depois ir mais fundo ainda no seu próprio negócio: ‘Como crio ferramentas para poder inovar? Como reinvento o que estou acostumado a fazer?’.
AFROLAB é uma metodologia que olha para o empreendedor enquanto ‘pessoa física’. Como esse ser especial em sua especificidade coloca seu potencial na sua pessoa jurídica e impacta o negócio.A gente olha muito pelas semelhanças (quem produz elementos similares ou de mesma natureza) e apartir daí estimula o trabalho em rede: o que eu sei, o que você sabe; como nos complementamos; onde sua expertise me libera na minha cadeia e fortalece a sua; como cooperar e olhar para a rede, para a colaboração.O AFROLAB não é exclusivo para negros, mas tem essa especificidade de nicho de produção/consumo para um mercado negro. Podem entrar brancos? Claro!Muito bem-vindos, mas sobretudo prioritariamente nos organizamos para a população negra. E o fato de estarem em maioria entre semelhantes faz com que se coloquem com segurança, reforça sua autoestima e faz aflorar toda a plenitude. Especialmente por que em muitos espaços em que estão eles são minoria, apesar de maioria na população brasileira. O AFROLAB permite esse reconhecimento de seu valor também na trajetória e presença do outro. Capta e utiliza uma energia de ‘estar entre os meus’; e quando estou entre os iguais, as minhas histórias acabam sendo um espelho e eu me sinto segura para colocar a minha potência, auxiliar os outros e expor as nossas fragilidades, aprendendo com a solidariedade e experiência de outros. Ao olhar então para a realidade comum de indivíduos a gente começa a pensar numa matriz de fragilidade/competência/habilidade coletiva. Então, o que eu sei, o que você sabe, como aqui junto a gente desenvolve processos de cooperação onde vamos crescer juntos mas cada um dentro do seu quadrado, do seu domínio. Interessante que no grupo a gente sempre tem produtor, tem equipe de comunicação. Se eu não sei fazer uma foto, fulana sabe. Então talvez ela possa fazer isso. E a outra sabe postar no Instagram e domina as redes sociais. Aprenda a desapegar e deixar que o outro faça aquilo e você se concentra no que sabe fazer. Então a gente estimula muito essa questão do desapego. Entenda o que você faz bem, traga pessoas, crie oportunidades, aproveite do talento do outro e valorize-o, criando novas chances para todos. AFROLAB também é uma metodologia de economia compartilhada: a moeda não é o dinheiro mas aquilo que eu posso entregar para o outro daquilo que é o meu potencial.
O maior desfio para o empreendedor negro é ter a autoestima de se ver como tal. ‘Ah! Eu vendo tapioca, não sou empreendedor!’ Como não? Você levanta todo dia, planeja as coisas, vai lá comprar material, produz, sai pra vender… Apenas quando ela e ele conseguem se ver nesse lugar é que conseguem acessar mais qualificadamente esse ecossistema. Se não tem autoestima para se entender como empreendedor aí tá fora do ecossistema. Estar dentro disso é reivindicar esses direitos. De estudo, de acesso a crédito, de uma série de coisas que temos que ter se quisermos construir um país mais inclusivo. Mas só consigo me inserir se eu me enxergar naquele lugar, se eu estiver naquele lugar. Aí passa pela autoestima: ‘Eu empreendo, eu sou empreendedora’ e exijo meu lugar de cidadã e cidadão, para mim e para todos.”
Para mim, um brasileiro como milhões fenotipicamente brancos e geneticamente negros nada poderia trazer mais orgulho: iniciativas como a FEIRA PRETA finalmente começam a libertar da escravidão os milhões de negros e negras do Brasil.
Consciência Negra é isso aí.
Inclusão Social: um conceito ainda distante da realidade
Os últimos dias foram férteis em velhas “novidades” no Rio de Janeiro – cidade à beira do caos – e especialmente perversos para a realidade das favelas e periferias. Particularmente no Morro dos Prazeres – o prometido sujeito dessa segunda coluna – as atividades estão intensas e me desculpo pela atualização tardia do site e pelo tom pessimista que segue, mas vivemos há vários dias um caso emblemático das contradições que cercam o contexto daquele e demais territórios de similar natureza: fragilidades e fortalecimentos comunitários; Esperança versus Desencanto, avanços e retrocessos, entre elas.
Há duas semanas está preso um rapaz de 21 anos – ótimo exemplo de novas gerações emergidas nas oportunidades abertas naquela favela ao longo desses últimos anos cheios de esperança – que agora correm o risco de afundar de novo num oceano de falta de perspectivas, depressão e reatividade. Willian Preciliano Bezerra da Silva está sendo injustamente acusado de participar de um crime pesado: a rendição de um grupo de policiais da UPP dos Prazeres (Unidade de Polícia Pacificadora), em novembro de 2017. Quem vive naquela favela, como eu, sabe quem é quem e comove fortemente aquele/as 7 mil moradore/as assistir a um processo incorreto. Teatro de absurdos que não se restringe àquele personagem: o que aconteceu a ele poderia ter sido com qualquer um/a dali? Aquele “erro” de identificação fere a comunidade há dias por envolver a vida de um inocente com o tráfico de drogas das favelas cariocas. O que se instaura para aquela população é um fato simples: a partir de elementos que não são colocados publicamente, o perfil do rapaz e a fala de toda aquela população não tem o valor, sequer, de suscitar uma dúvida. Favelados somos, portanto cúmplices de bandidos (se não os próprios). Saiba mais sobre o caso:
Talvez você se pergunte: o que isso tem a ver com o assunto da coluna?
O objeto do meu interesse é o desenvolvimento comunitário, a vida de quem mais precisa de oportunidades para se inserir plena e dignamente na sociedade. Economia é eixo no mundo do capital, mas Inclusão Social define suas radiais e é triste relembrar o período luminoso vivido nos últimos anos pelos Prazeres (a partir de oportunidades criativas que melhoraram a qualidade de vida em dezenas de favelas cariocas) à luz de um presente de violações, reações irracionais e uma perspectiva de futuro tão sombria, onde pessoas antes solidárias agora acreditam que é armado e atirando que resolveremos problemas decorrentes da desigualdade de condições socioeconômicas do Brasil. É incrível como se consegue cada vez mais segurar uma Bíblia na mão e uma pistola na outra.
A Economia Criativa pode ser entendida como oportunização trazida por arranjos econômicos inovadores ou pela valorização de outros, vistos anteriormente apenas pelo viés de “arte & cultura” (aquilo que todo mundo adora, mas ninguém queria que seu filho seguisse, “coisa sem futuro”). Hoje, os setores que a compõem ganharam reconhecimento e valor econômico de peso – mudando aquela concepção. Conceito em formação, entendido e abordado de maneiras variadas, há um consenso entre aquele/as que ajudam a desenvolvê-lo em sua adolescência: o valor da qualificação intelectual para ativar aquele leque de possibilidades. Educação é elemento transversal nos setores da Economia, tanto na dimensão da empregabilidade quanto do empreendedorismo. Mas entregar seu destino ao processo de educar-se é algo próximo à fé: acreditar que o que lhe aguarda à frente é construído pela sua ação, investimento e tempo. Para se avaliar o resultado de algo que analisamos, buscamos suas razões de fundo, o lugar cada vez mais recuado e primordial de onde surge aquilo que vai promover uma revolução. Voltemos então mais um pouco. Transformações inclusivas de impacto necessitam de suporte econômico; este encontra na Economia Criativa um vetor inovador e acessível a diversas camadas da população (inclusive aquelas que vivem à margem dos setores tradicionais); que para se desenvolverem plenamente necessitam de instrução e calma, estas para se consolidarem exigem aposta no futuro. Para tudo isso, segurança: individual e coletiva.
Estamos bem distantes de algum prognóstico positivo nessa esfera. Veja os dados relativos à política de Segurança em curso no Rio, acessando: http://observatoriodaintervencao.com.br/
Mas se essa realidade segue distante da própria classe média, o que dirá de contingentes menos favorecidos?
Ao longo da última década carioca ouvimos o discurso demagógico da “invasão social”, prometida a reboque da instalação de novas políticas de segurança. Algo difícil de acreditar, pela imaturidade social que nos acomete como brasileiros, viciados na busca de oportunidades pelo viés individual, nunca pelo comunitário (e esse mal acomete tanto os representantes quanto os representados politicamente). Comportamento predatório muito longe da construção de uma Nação para gerações e não para si e seus “chegados”. Porém, com a instauração de um período de oportunidades trazidas momentaneamente por aquele (novo?) projeto de segurança pública aproveitou-se muito efetivamente de tamanha excitação comunitária, em muitos lugares. O Morro dos Prazeres e o Bairro Carioca (em Triagem) deram bons exemplos disso. Neste último, o projeto das Naves do Conhecimento, equipamentos públicos municipais de excelência criados há 6 anos em periferias cariocas proporcionou acesso à Internet, cultura digital e tecnologias, muito além do desejo de possuir um smartphone e uma conta em redes sociais.
Essa história em sua trajetória ascendente chegou ao ápice nos últimos anos, mas na minha favela vem de antes e seus protagonistas são o/as moradore/as daquele morro e um conjunto de atores fundamentais, que chamamos de ING’s – Indivíduos Não-Governamentais. Leia mais sobre isso no artigo que escrevi para o Conselho da Universidade das Quebradas:
https://www.universidadedasquebradas.pacc.ufrj.br/individuos-nao-governamentais-ings/.
ING’s foram uma espécie de soro fisiológico do organismo “Morro dos Prazeres” em sua trajetória de articulação e desenvolvimento ao longo dos últimos anos. Um sucesso do processo de “pacificação” que proporcionou ao Rio de Janeiro garantir megaeventos planetários e sonhar com um futuro que nem acreditávamos mais ser possível.
Para se ter uma ideia dos bons ventos que sopraram durante aquele espaço-tempo, moradores de favelas movimentaram R$ 68,6 bilhões em 2015, segundo pesquisa do Data Popular e da Central Única das Favelas (CUFA), em 63 favelas de 10 regiões metropolitanas. O aumento da renda média, proporcionado principalmente pelo crescimento real do salário mínimo e do emprego formal permitiu que 12,3 milhões de pessoas que viviam naquelas comunidades participassem do mercado de consumo em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Curitiba, Porto Alegre e Brasília (locais da pesquisa). Um alento de esperança que alguns atribuem a um governo nacional de base popular, outros creem ter sido apenas uma conjuntura internacional favorável. Não entrarei nessa discussão que faz ferver o sangue da maioria, mas se estivesse agora escrevendo um roteiro audiovisual diria: corta pro presente!
Lamento, o bom sonho vai se esfumando da memória na confusão de cada dia. Olhar agora para o meu personagem coletivo (o Morro dos Prazeres) é ver não a exceção daquela, mas os grandes desafios estruturais de qualquer favela carioca hoje; e não há como dissociá-los do que acontece com Willian Preciliano e com muitos personagens de igual origem, no mapa social amplo e fragmentado do Rio de Janeiro. Aquela trajetória de sucesso ainda será tratada aqui (é orgulho de centenas de pessoas, moradoras ou não daquela favela e seu entorno) mas rememorar agora um passado solar neste presente entre nuvens seria anacrônico. Dispensarei menos atenção à base econômica do tripé economia/criatividade/inclusão, destacando os desafios fundamentais da cidadania de sujeitos que compõem uma enorme faixa da sociedade ainda longe do direito a existir com dignidade. O olhar desta coluna hoje segue uma questão básica da Inclusão Social numa metrópole brasileira (especialmente no Rio de Janeiro): a própria condição de favelado (e seu destino).
Willian Preciliano é filho de imigrantes nordestinos. Pai porteiro, mãe dona-de-casa, é um rapaz bem criado e que não se envolveu com drogas (raridade no universo urbano contemporâneo; de ilimitada oferta de entorpecentes lícitos ou não). Com 96% de frequência escolar, ensino médio completo, tem personalidade tímida e alegre. Bom relacionamento e comprometimento com aquilo em que se envolve. Foi uma das centenas de jovens que passaram pelo projeto Premier Skills, uma ação do British Council com apoio da Premier League e secretaria de Segurança do Rio, que o morro dos Prazeres soube aproveitar e que eu tive o prazer de conceber e coordenar com outros ING’s. Originado de um modelo inglês que associava sessões de futebol com atividades culturais, o Premier ganhou outra cara nos Prazeres definindo atividades que chamamos de Prática Cidadã, uma espécie de “mão-na-massa” para promover melhorias na comunidade e nessa ação refletir sobre o papel de todo/as na pavimentação de um chão com significância real de direitos & deveres. Cidadania repetindo regras que existem mais no papel, menos na realidade não nos interessava. Pintamos praças, eliminamos lixões, conscientizamos moradores, abrimos espaço para uma interação menos preconceituosa entre o novo contexto policial que emergia e a comunidade ainda reticente; questionamos as obrigações de cada um/a na melhoria da qualidade de vida daquele lugar. Não apenas do Prefeito, Presidente, Associação de Moradores… mas da Dona Branca, do Seu Zé Venâncio. E deles, aqueles novos jovens que moldaram seu caráter comunitário ao longo de cinco anos de um projeto cujo sucesso tornou-o destaque inclusive no país de origem, a Inglaterra (as portas abertas pela trajetória daquele projeto continuam a nos beneficiar e foram fundamentais para a criação da CriaAtivo Film School, uma iniciativa que beneficia 170 jovens de 80 favelas e bairros periféricos cariocas hoje, também coordenada pelo Instituto Pólen, nossa “ONG de ING’s”). Mas quem conhece de perto a realidade de faixas pobres do Brasil sabe a dificuldade de manter jovens num ambiente sadio, física e intelectualmente, particularmente interessados no ambiente escolar. O Premier Skills usou o poder de atração que o futebol exerce no Brasil para criar um contexto de valorização de práticas, estudo e saber; também a ação comunitária como ferramentas de transformação de vida, associadas àquele prazer desportivo. Sem o embuste de “federar” ninguém, alimentando sonhos (e frustrações) de inacessíveis carreiras futebolísticas. Willian Preciliano, ao longo de sua entrega a nós por cinco anos beneficiou-se disso e seguiu seu caminho, envolvendo-se em projetos de qualificação profissional e concluindo os estudos. A mesma história de Walas, Lucas, Camila e uma enorme lista de bons exemplos resultantes daquele investimento comunitário, se não fosse o trágico acontecimento do dia 09 de agosto: ao apresentar-se no DETRAN para dar início ao processo de habilitação para condução de veículos descobriu um mandado contra ele. Saiu preso, deixando-o e a todo/as nós atônitos com o que ocorria.
Em 2017, o desgaste da política de segurança pautada pelas UPPs já era evidente em toda a cidade do Rio de Janeiro. No Morro dos Prazeres, apesar de incidentes pontuais (a maior parte iniciada nos morros vizinhos) o relacionamento seguia na cordialidade possível num ambiente com dois elementos explosivos e armados. Em 20 de novembro daquele ano, nove policiais foram subjugados por traficantes. Uma hora depois foram soltos, armas devolvidas. Sem mortos, feridos ou maiores humilhações – o que não diminui a gravidade do ato e a série de crimes relacionados a ele. Mas os próprios depoimentos dos policiais declaram ter se tratado de uma “conversa”, o que evidencia o caráter do bom relacionamento em vigor ali, fruto de um grande trabalho de articulação ao longo desses anos, tanto de corretos policiais que comandaram e atuaram naquela UPP quanto das lideranças que existem na comunidade e sua credibilidade.
Cinco meses após aquele fato, os policiais afirmaram ter reconhecido 13 envolvidos; um envolveu Willian Preciliano, sendo seguido por outros cinco. Não há álibi (estar com a mãe, em casa, obviamente não tem validade). Também não há provas contra ele, além do “reconhecimento”, que o processo alega ter-se dado por fotografias.
A Unidade de Polícia Pacificadora do Morro dos Prazeres foi inaugurada no início de 2011. A beleza do morro, sua proximidade com o Centro e zona Sul, a simpatia dos moradores, o charmoso bairro de Santa Teresa, o Cristo Redentor e a vista deslumbrante de 360 graus, aliados à sensação de segurança que então se estabelecia no Rio não tardariam a atrair muita gente para seu cotidiano.
Oportunidades surgiram na esteira de um Brasil que decolava (uma alusão à capa da revista inglesa The Guardian, que apresentava a cidade como potência cultural, social e econômica), o Rio era um sucesso internacional de novo e passamos a atrair um grande fluxo turístico. Engana-se quem acredita que aquele visitante estrangeiro vinha em busca de aventuras, miséria ou gente armada. Os morros atraiam justamente pelo caráter criativo da vida na favela, pela capacidade de ser feliz apesar das durezas de seu contexto e pela incrível vista. O turismo nas comunidades – ao contrário da imagem de gringos em jeeps que a Rocinha difundiu – nunca foi um safári humano, mas criou laços duradouros de proximidade e ofertou possibilidades de interação e formação para muitos jovens, além da quebra de uma série de preconceitos de ambos os lados (turistas e moradores). Vocês conhecerão a história do Prazeres Tour em outra ocasião.
Ao universo ficcional e às coberturas documentais que os jovens locais na Galera.com já realizavam (outra história que contarei depois), o morro passou a gerar renda para tantos outros moradores também como cenário de programas de televisão (como o RockGol 2011, um campeonato de futebol entre artistas veiculado pelo canal MTV e novelas da TV Globo e da Record) ou para filmes como “Morro dos Prazeres”, premiado documentário de Guta Ramos que acompanhava o cotidiano daqueles primeiros anos de pacificação na favela.
Importante lembrar que um dos setores que mais cresce na Indústria Criativa é justamente o mercado da produção audiovisual. Nas favelas e periferias cariocas, o período de tranquilidade conquistado com as UPPs trouxe uma série de oportunidades econômicas em sintonia com aquele setor, gerando um aquecido mercado audiovisual que atraiu inclusive blockbusters hollywoodianos (destaque para “O Incrível Hulk”, “Velozes e Furiosos 5 – Operação Rio” e o ainda inédito no Brasil, “Trash – A esperança vem do lixo”). Mas nem sempre de olhares externos é feito o apelo audiovisual da favela. O longa-metragem “Fuga da Rocinha”, do roteirista e diretor Antônio Junior, concebido e produzido naquela comunidade com menos de R$ 3 mil, em um ano já tinha sido assistido por mais de 1,6 milhão de pessoas no YouTube.
Entre setembro e outubro de 2017 mais um longa foi filmado no Morro dos Prazeres. “Pacified”, atualmente em fase de montagem, tem roteiro e direção de Paxton Winters, um apaixonado americano morador daquela favela há seis anos. A produção do filme, cujo roteiro é inspirado na realidade daqueles moradores que tanto encanta o diretor, empregou dezenas de pessoas, criando uma cadeia de contratações diretas e indiretas de alimentação, locações, produção de arte, transporte e elenco. Entre eles, Willian Preciliano. E talvez aí esteja o elemento que o associou indiretamente ao crime ocorrido apenas um mês depois.
Contratado do elenco de apoio e tendo como personagem um bandido da gangue do traficante interpretado pelo ator José Loreto, Willian gravou devidamente caracterizado, portando réplicas de armas e teve a inocência de postar nas redes sociais algumas das fotografias – junto ao elenco protagonizado por Bukassa Kabengele e Débora Nascimento, mas também sozinho. Acreditamos que as fotos do dito “reconhecimento” possam ter sido aquelas, descontextualizadas. Não há outra razão para que fotografias de um rapaz com aquele perfil, que jamais teve ocorrências policiais ou citações alusivas a crimes ou comandos de drogas em suas páginas pessoais possam ter alimentado álbuns de delegacias. Pense um pouco: vida no crime exige dedicação intensa e exclusiva. Willian, em um ano (meados de 2017 a meados de 2018, quando concluiu o ensino médio) faltou na escola menos de 5 (cinco!) dias, num período em que tivemos muitas operações no morro e confrontos variados, inclusive o fato aludido no processo. Você consegue imaginar nesse cenário, um bandido (descrito como um dos “cabeças”) dizer pros companheiros: “Segura aí meu fuzil que vou na escola acompanhar todas as aulas e volto mais tarde, beleza”?
O fato é que, desde a prisão, aquela comunidade tenta em vão provar sua inocência e na ressaca diária dessa enorme injustiça revela-se outra em ampla escala: a absoluta falta de credibilidade do morador de uma favela hoje. Talvez possa dizer que, desde sempre, a visão sobre aquela população como bandida ou cúmplice esteja no senso comum brasileiro. Verdade é que, nesse momento, a desmoralização de políticos e políticas públicas do Rio de Janeiro (personificada num ex-governador preso que carrega boa parte da tipificação do Código Penal) atinge níveis dramáticos e é “referendada” por uma sociedade que passou a não considerar criminoso um delegado de polícia, num programa de televisão, ameaçar a periférica Acari com “um banho de sangue” para vingar a morte de um colega; ou o secretário de Segurança usar a expressão “ai da comunidade onde a gente tiver dissabor”; ou (pior para toda a nação) um candidato a presidente, em rede nacional, declarar como plano de governo que a saída para a violência é produzir mais violência. Dentro desse ambiente não é estranho que a “inteligência” policial e a “mão pesada” da Justiça estejam tão pouco sensíveis ao argumento de milhares de moradores. O Morro dos Prazeres, ao longo dos anos em convívio harmônico com a UPP (e mesmo nesse sofrimento de agora, acredita num erro e não em má fé policial) sempre demonstrou a dignidade de caráter de quem é VÍTIMA, nunca cúmplice de ilegalidades. É incrível que, com tantos argumentos demonstrando claramente a diferença daquele rapaz diante dos demais acusados (todos com baixíssima escolaridade e ampla ficha criminal), sendo defendido por pessoas reconhecidamente íntegras, parceiras por anos daquele equipamento policial local não sejamos capazes de suscitar o mínimo de dúvida em sua inocência (ou pelo menos de que não apresenta traços de perigo à sociedade, que o obrigue a seguir encarcerado, enquanto se investiga melhor).
O pedido de revogação da prisão foi negado pelo Ministério Público e igualmente pela juíza do caso (ambos repetindo o mesmo argumento inicial, um aparente “copia e cola” do processo original: “fato grave, reconhecido por policiais”), sem observar as estranhezas. No fundo, o que parece estar sendo dito e praticado é que a fé pública de 6 policiais é absolutamente maior do que a palavra de 7 mil moradores. Ninguém estranha que, entre tantos, defendamos um. Somos da favela, não merecemos confiança.
O processo está agora sob apreciação de um recurso e, talvez, no intervalo entre a finalização desse texto e sua publicação, um desembargador possa ter percebido a alta probabilidade de injustiça desse fato (para eles: para nós, 100% daquela favela, não há nenhuma dúvida).
Bem, mas o que isso tem mesmo a ver com Economia Criativa? Tudo!
Apesar de sua capacidade quase miraculosa de gerar profundas oportunidades positivas (e grandes riscos), para que estabeleça seu prognóstico positivo a Economia Criativa necessita de um ambiente estruturado e estruturante que estamos longe de ofertar em todo o Brasil e, apesar de nosso imenso e reconhecido capital criativo, talvez nem desta inventividade possamos nos beneficiar. A despeito da importância de instrumentos, softwares e processo inovadores, a essência e o valor do bem criativo está na capacidade humana de inventar, imaginar e criar, seja de forma individual ou coletiva. O Morro dos Prazeres reinventou-se ao longo dos últimos anos, inclusive em modelos de inter-relacionamento com o quase único elemento do Estado ali presente, a polícia. Criamos juntos e em interação uma série de oportunidades que foram atrativos para franceses, ingleses, alemães, sul-africanos, americanos. Mas não temos nenhum valor para o brasileiro.
Favelas representam (apenas na cidade do Rio de Janeiro, segundo o Censo 2010, em dados questionados pelas comunidades), pelo menos ¼ da população. O caminho de sua inclusão social, mesmo com os avanços que tivemos nos últimos anos, ainda é bem longo e passa primordialmente pelo respeito à dignidade daqueles sujeitos.
Talvez nem Willian Preciliano, nem eu ou você vejamos isso ocorrer no Brasil.
por Charles Siqueira em 11/07/2018.
Origens criativas
Muito prazer, sou Charles Siqueira. Pernambucano de adolescência baiana, vivo e trabalho no Rio de Janeiro há 27 dos meus já 49 anos dedicando-me a reunir parceiros em prol da melhoria da qualidade de vida de populações periféricas, especialmente de favelas cariocas, com ações que hoje estão sendo designadas como vetores de Economia Criativa para a Inclusão Social, mas no início não tinham pretensão de serem nominadas. Tampouco obter os resultados em escala como os daquelas ações solidárias de homens e mulheres (jovens, velhos e até crianças) que passamos a chamar de INGs – Indivíduos Não Governamentais. Ao criar tal conceito buscamos afirmar já em nossa identidade comum que o poder de transformar o mundo envolve o seu entorno e responsabiliza qualquer um/a.
Perfil empreendedor
De cara, acredito que seja mais importante qualificar este que escreve a você, dando as linhas gerais do que pretendo compartilhar – se me der o prazer de estarmos junto/as mensalmente. Esta coluna pretende olhar para um aspecto em particular: a força de ações concretas (sejam individuais, coletivas ou institucionalizadas) no destino das pessoas e o sucesso de seus empreendimentos; considerando também os erros aprendidos – o lado “b” de qualquer iniciativa, sempre tão capaz de nos ensinar a sermos melhores em nossas intenções. Vou me amparar em muitos dados, mas saibam que essas palavras terão sempre muito de opinião. Nessa jornada terei a ajuda de colaboradores diversos, do Brasil e da Inglaterra (há anos um país parceiro de nossas iniciativas e um ecossistema de inovação bastante desenvolvido quando falamos da criatividade impactando economia e desenvolvimento urbano); também espero aprender com dicas, opiniões, dúvidas e críticas de cada um/a de vocês que nos der o prazer de acompanhar essas narrativas. Ratificando, retificando e ampliando os sentidos de palavras e conceitos aqui presentes.
Enxergo os três conceitos associados ao tema aqui sob minha responsabilidade (Economia, Criatividade e Sociedade) como palco da ação de sujeitos, mesmo quando utilizamos a ótica dos números para desenhar visões de mundo ou constituir ferramentas que ajudem na sua “gestão”. Recorrerei muito a eles: números por vezes são frios e distantes (quando equiparam pessoas a processos) mas tantas vezes são necessários para estabelecer indicadores que ajudam a enxergar resultados. Mas essa não será a coluna de especialistas e sim de sujeitos em ação para melhorar a qualidade de vida de quem segue historicamente prejudicado/a pela má-distribuição de recursos e riquezas. Buscando aprender com as ações de outros sujeitos – em configurações que podem variar do indivíduo e da escala das organizações civis ou ainda no nível de políticas públicas, já que não creio sermos governados (ainda?) por máquinas ou algoritmos, e sim por pessoas investidas de vontade e/ou poder.
Pretendo incluir perspectivas teóricas – já que pesquisa e inovação são conceitos-chave no universo em construção da Economia Criativa -, mas iluminar casos concretos é o que mais pretendo fazer aqui e gostaria de ter a companhia de um sujeito pensante e atuante para a melhoria da vida em igualdade social – você.
Convite surpresa
Recebi o convite para colaborar com o site Socialismo Criativo com honra, alegria e algumas dúvidas. Primeiras reflexões: quem sou eu para ladear personalidades tão relevantes das áreas de empreendedorismo, gestão e economia, como o/as companheiro/as colunistas? O que tenho a contribuir que não possa ser melhor abordado por palavras e ideias daquele/as especialistas que admiro?
Não encontrei a resposta e deixarei essa conclusão para vocês, ao longo do tempo. Topo o desafio não de competir com ele/as; perderia: não sou “sério” o suficiente, nem tão formal na escrita ou rigoroso com conceitos. Criei coragem de encarar esse público por uma personalidade inquieta que deseja naturalmente conhecimento e não-acomodação (e se obriga à ampliação de saberes e à confrontação de pontos de vista), tão explícita no caminho de (in)formação disperso e multifacetado percorrido até agora: Letras, Dança Contemporânea, Filosofia e Gestão Ambiental. Não é trajetória de foco, mas de quem segue como indivíduo aberto e curioso, construindo uma livre jornada, respeitada e apoiada por instituições nacionais e internacionais e espalhando-se pelo Brasil, mas acima de tudo admirada pelos moradores das minhas comunidades. O convite que lhe faço é o de seguir conosco conhecendo as inquietações daquele/as que transformam vidas pelas novas maneiras de aprender, ensinar e produzir, características da revolução criativa em expansão no mundo. Se tens essa curiosidade convido-te para junto/as seguirmos revelando outro/as.
Viagem conjunta
O questionamento seguinte também foi natural: um sujeito, cujo ethos e ações tem resultados políticos identificados com a esquerda, mas que nunca foi partidário é passível de encontrar espaço num porto firme de posição ideológica tão definida?
Para essa pergunta tenho menos resposta ainda. Porém confio mais uma vez na trajetória passada para superar armadilhas de um mundo de polarização apaixonada que costumo explicar como um momento que diminui a relevância das Ágoras (os espaços públicos de opinião cidadã da Grécia Antiga) e a substitui pela espetacularização das arenas de luta romanas. Diversão com barbárie, no universo tecnológico das telas de um smartphone – patrimônio simbólico dessa era capitalista.
Há anos como articulador comunitário na favela onde vivo no Rio de Janeiro ou nas demais que influencio, sempre foi sedutora a perspectiva de usar capital moral a serviço de indivíduos políticos. Entendi que quão mais longe de uma cena partidária me mantivesse (sem desmerecer a esfera político-partidária) mais forte seria o grau de coesão comunitária. Irmão de outro/as 15, aprendi cedo a conciliar para manter a união e segui vida afora acreditando que não ter posições cristalizadas pode levar a caminhos transformadores; uma aprendizagem da Filosofia (busca aberta, sempre refratária a “certezas”) e um acerto que proporcionou o status único no meu cenário de inimigos figadais: de chefes de tráfico a comandantes da polícia – não pairaram dúvidas sobre intenções e princípios que regem meu trabalho. Sem cumplicidade, mas com uma confiança conquistada, por exemplo, ao não enxergar a polícia como vetor de corrupção e violência (senso comum no Rio); tampouco no traficante um monstro a ser eliminado para o bem da segurança pública.
Organizando os sonhos
Espero que esse posicionamento estruturante me permita trazer a esta página, entre erros e acertos, a grandeza do trabalho de qualquer um/a; não apenas de alinhamentos às minhas próprias ideologias (ou do site). Concordo, discordo, questiono, critico, aponto as falhas, reafirmo minhas convicções (ou as altero, se assim for), mas mantendo respeito pelas demais. Isso também peço a você e esse entendimento é indispensável em nossa relação que começa agora.
Sou artista desde que amei o forró dos barracões no sertão pernambucano. Descobri a break-dance e o som pop de Michael Jackson e Madonna, em apresentações do Grupo Alpha na TV Itapoan, em Salvador; estudei dança contemporânea na escola de Angel Vianna, no Rio. Em meu gosto por mestre/as, formei-me na companhia de Paula Nestorov e Antonio Saraiva, um grupo que inovou como híbrido de dança e música na cena contemporânea carioca, que nos anos 90 tornava-se destaque no mundo e profissionalizou uma ampla geração, em franca produtividade até hoje.
Abandonei a segurança do Banco do Brasil para viver economicamente de Arte, o que exigiu muita criatividade além dos palcos (e um posicionamento entre a loucura e a coragem, para alguém financeiramente pobre). Tornei-me professor e conheci o Morro dos Prazeres, uma favela de 7 mil moradores, no alto do charmoso bairro de Santa Teresa. Encontro mágico: uma população feita de negros (como o meu centenário pai), mineiros e nordestinos como eu. Ali fundei o Dança pra Galera com dezenas de crianças que cresceriam ao longo dos 16 anos seguintes e seriam a espinha dorsal de um projeto de desenvolvimento comunitário que envolveu centenas de vidas e desdobrou-se em iniciativas variadas como a Galera.com (núcleo de produção gráfica e audiovisual) e o Núcleo de Educação e Formação Humana (educação complementar à jornada escolar com leitura, informática, artes, educação ambiental e valores solidários). Também o Prazeres Tour, uma cadeia de produção e geração de renda legal através de atividades turísticas de bases comunitárias; o Jardim dos Prazeres e o Caminho do Graffiti, ações de valorização das paisagens e da autoestima locais. Mais recentemente, a CriaAtivo Film School – qualificação profissional de jovens de 82 favelas e periferias do Rio, realizado em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro. Projetos, ações e iniciativas que moldam uma organização não-governamental, o Instituto Cultural Pólen.
Metas possíveis
Os desdobramentos das iniciativas e a herança indireta daquelas ações; o impacto na formação e na vida econômica dos jovens e da comunidade ao longo dos anos; a transformação de um local antes isolado e sob domínio total de traficantes para uma comunidade aberta ao mundo, interagindo com outros países e articulando sua segurança a partir da consolidação de uma rede forte de protagonistas do território, intermediando o diálogo e minimizando confrontos letais entre policiais e traficantes de drogas serão o destaque da nossa próxima coluna.
Espero ter o seu interesse, atenção e participação.